CARTA DE PEDRO I À MARQUESA DE SANTOS - I

Notez-moi sur un cahier tous les actes de votre journée et je vous dirai votre caractère.
Stendhal


Estava “namorando” a minha simples biblioteca, mas, lindíssima, numa madrugada chuvosa e friorenta, úmida, como acontece no solstício da invernia, e sempre disposto, com a insônia de sempre, furtei da sua “perfilação” um livro que encerra uma série de cartas de D. Pedro I (o “Demonão”) a D. Domitila de Castro Canto e Melo, que se assinava Domitília, nome de batismo (a “Titília”, no tratamento íntimo).

Longe de mim, pretender fazer uma suma das Notas de Rangel, mas, simples explicações, diminutas, pois, ele era de uma completude que, sumarizá-las, escorreitamente, com detalhes, seria uma temeridade, pelo menos para mim. Então, para que o leitor, que não se dispõe a uma profunda pesquisa, e aqui, apenas ao prazeroso, tentarei dizer-lhe algo para que as conjecturas não se hipertrofiem, criando, para ele, um verdadeiro estorvo, afugentando o deleite da leitura. Todavia o livro está nas livrarias, à disposição de todos. Acho até que, para quem se predispuser a uma pesquisa, não haveria, logo à mão, fonte mais caldalosa.


Santa Cruz, 17 de novembro de 1822.

Cara Titília2

Foi inexplicável o prazer que tive com as suas duas cartas.
Tive arte de fazer saber a seu pai3 que estava pejada de mim4 (mas não lhe fale nisto) e assim persuadi-lo que a fosse buscar e a sua família, que não há cá morrer de fome, muito especialmente o meu amor, por quem estou pronto a fazer sacrifícios.

Aceite abraços e beijos e fo...
Deste seu amante que
Suspira pela ver cá o
quanto antes,

O Demonão7

(Acervo da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.)


Notas, resumidíssimas, de Rangel:

1. Fazenda dos Jesuítas, distante do Rio de Janeiro 11 léguas (mais ou menos 72km, chamada légua de sesmaria - Aurélio. D Pedro I, apreciava muito estar por lá.);

2. Títília, designação íntima de D. Demetília (ou Domitila, Domitilla, como D. Pedro escrevia-o, Demetília, Dimitília, Domitildes e até Metilde;

3. O seu pai chamava-se João de Castro, “alcunhado de ‘Quebra-Vinténs’ por sua força física”. Natural de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira e de origem fidalga. Inspetor das Estradas de São Paulo, 1921. Casou-se com D. Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas. Gentil-homem da casa Imperial e comendador de Avis, 1825, estribeiro-mor do Império. Foi o primeiro visconde de Castro, em 1826. Antes disso ocupara, em Portugal e no Brasil, respectivamente, inúmeros cargos militares de alta patente (1768-1798).

4. Como disse Alberto Rangel, que não posso resumir para um bom entendimento: “As relações mais íntimas da paulista com dom Pedro realizaram-se desde agosto de 1822. A prenhez [daí o “... pejada de mim...”] que daria em resultado o aparecimento de dona Isabel Maria, a primogênita de D. Pedro nesses amores espúrios, ter-se-ia iniciado em setembro de 1823. Na data da presente carta deveria andar o estado de gravidez de dona Domitila bastante adiantado. Consta que o primeiro filho de dona Domitila com D. Pedro I foi um menino que não vingou. O barão de Maréschal deve ter a ele aludido, quando a 16 de março de 1826 escrevia: “O que me parece estranho é que à morte do último filho natural do imperador, a qual informei a Vossa Alteza, apesar do profundo sofrimento do príncipe não se fez qualquer aparato na cerimônia fúnebre.”

5. “Quando dom Pedro tornou de São Paulo em setembro de 1822, onde iniciou em agosto anterior os seus amores com dona Domitila, esta havia ficado em São Paulo, onde vivia separada de seu marido e em companhia da sua família. Só viria para a Corte, com pai, as irmãs casadas e os outros irmãos, a chamado de dom Pedro. E isso quando? Ignora-se a data precisa. Interessante é que nem o seu nome nem o de seus pais e irmãos apareçam em relações de subscrições do primeiro semestre de 1823, como fossem a Relação das quantias pra a expedição da Bahia, a subscrição para os arcos triunfais etc.”

6. Sabe-se que a família de dona Domitila, resumia-se a seus pais, “... seus filhos legítimos e ilegítimos, seus sete irmãos, dos quais quatro masculinos e que foram todos militares do Exército. Cercavam-na, depois de estabelecida na Corte, também, alguns outros parentes: tia-avó, cunhadas, o tio materno Manuel Alves, sobrinhos e duas primas. Dizia o barão de Maréschal, em relatório de 24 de abril de 1827: “A família aflui de todos os cantos; uma avó [seria, talvez, a tia-avó], uma irmã e uns primos acabam de chegar”.

7. “Demonão”, presume-se ser um tratamento dado a D. Pedro por dona Domitila, “... de maior intimidade.
Luiz de Carvalho Ramos

Fonte: CARTAS DE PEDRO PRIMEIRO À MARQUESA DE SANTOS / Arquivo Nacional, Notas de Alberto Rangel, p. 53-63; [coordenação editorial de Emanuel Araújo]. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
Luiz de Carvalho Ramos
ANENCEFALIA – FIM DA LINHA



"Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia, frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica." - Professor Luís Roberto Barroso.

Após o "decisum" do eminente ministro do Supremo Tribunal-ST, Marco Aurélio de Mello (27.04.2005 – 7 votos a quatro), concedendo à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS medida liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – APDF, nº 54, autorizando a antecipação terapêutica de parto nos casos de anencefalia, o que levou a sociedade a polemizar o assunto. Naquela oportunidade, acompanharam o voto do ministro Marco Aurélio (1), os eminentes ministros Celso de Mello (2), Sepúlveda Pertence (3), Nelson Jobim (4), Carlos Ayres Britto (5), Joaquim Barbosa (6)e Gilmar Mendes (7). Votaram contra a admissibilidade da ADPF, os eminentes ministros Cezar Peluso (1), Eros Grau (2), Carlos Velloso (3) e Ellen Gracie (4). Ulteriormente, a liminar, em sessão plenária, foi cassada por maioria de votos, auscultada e acatada a manifestação do eminente ministro Eros Grau.

A anencefalia, assim é definida pelos médicos: “Uma malformação congênita que se caracteriza geralmente pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida”. Entretanto, o assunto está aberto a discussões. "O termo anencefalia é impróprio, uma vez que não há ausência de todo o encéfalo, como o termo sugere. O encéfalo compreende várias partes, sendo as principais o telencéfalo (cérebro ou hemisférios cerebrais), o diencéfalo (do qual fazem parte o tálamo e o hipotálamo), tronco encefálico (mesencéfalo, ponte e medula oblonga). O cérebro é a parte anterior e superior da massa encefálica e ocupa a maior parte da cavidade craniana”. Pergunta-se, ainda: Havendo morte encefálica a criança não estaria morta? “É importante essa pergunta, pois no encéfalo não se caracteriza a morte encefálica. Inadvertidamente querem igualar a falta de hemisférios cerebrais com a morte encefálica. Os critérios para diagnosticar a morte encefálica não são aplicáveis cientificamente a crianças menores de dois anos, muito menos a crianças intraútero, quando nem se pode fazer os testes necessários ao diagnóstico. Uma vez nascida a criança anencefálica, responde a estímulos auditivos, vestibulares e dolorosos e apresenta quase todos os reflexos primitivos dos recém-nascidos, conforme informam os Professores Aron Diament e Saul Cypel da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em “Neorologia Infantil”, 3ª edição, Editora Atheneu. A criança anencefálica é um ser humano vivo, com toda a sua dignidade que lhe é conferida pela sua natureza humana”.

Qual a avaliação que o senhor faz da decisão do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, de autorizar o aborto em caso de anencefalia fetal?

“Decisão apressada, tendenciosa e, segundo muitos juristas, é inconstitucional porquanto macula o artigo 5º da lei suprema [corresponde à garantia da proibição de pena de morte], que considera inviolável o direito à vida. Além disso, viola o artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também denominada de Pacto de San José da Costa Rica [no inciso 1 do Art. 4: “Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”, mas admite a pena de morte "oficial", aceitação inserta no inciso 2, nos Estados que não a aboliram, v.g., EEUU, Cuba, China e alguns países árabes], tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção [a vida em sua plenitude, e não, uma vida que sabemos quase pronta, que não vinga a completude, tornando a morte "inevitável e certa"]. Do ponto de vista ético foi uma aberração conceder aos médicos uma função de carrasco para matar seres humanos inocentes, função para a qual nós, os médicos, não fomos formados ” (“Entrevista com Dernival da Silva Brandão, Especialista em Ginecologia e Obstetrícia e Membro Emérito da Academia Fluminense de Medicina, que esclarece as questões referentes à gestação de um feto com anencefalia e o porquê de não se permitir o aborto neste caso. O tema ganhou destaque na sociedade brasileira, após o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, decidir pelo aborto em caso de anencefalia). A entrevista completa, encontra-se no site ZENIT.org.

A Dra. Gizele Thame, biomédica, conforme artigo intitulado "Defeitos do tubo neural podem ser causados pela deficiência de folato", nos ensina que “a anencefalia [ausência total ou parcial do cérebro] é doença grave que geralmente causa a morte da criança e poderia ser evitada (como outras patologias) com simples medidas de suplementação de folato (ácido fólico)”. Ela insiste na importância da conscientização da mulher em idade reprodutiva e, principalmente, da classe médica responsável pela recomendação da suplementação antes da gravidez. “A porcentagem de médicos que tem consciência dessa necessidade é muito pequena. Nos centros de indução de ovulação a recomendação seria fundamental, mas nem sempre existe. E como a anemia por falta de ferro é a mais freqüente, estuda-se menos o folato”. Diz o articulista, que a Dra. Gisele Thame enfatiza a importância de medidas preventivas e campanhas nacionais de esclarecimento... “A seu ver, se o feto nasceu sem cérebro, já nasceu com “morte cerebral”. Dra. Gisele já iniciou sua pesquisa de doutorado dando continuidade a este estudo. Para tanto, solicita aos obstetras que encaminhem gestantes com essa diagnóstico para realização de exames de sangue gratuitos”.
Conforme, felizmente, enfatizou a Dra. Gisele Thame, a prática de medidas necessárias que poderiam evitar os defeitos no tubo neural (e outras patologias), "in casu", com a suplementação de folato (ácido fólico) às gestantes, indicando, inclusive, o "modus faciendi" de outras atitudes que debelariam o mal indesejado.

O que mais nos impressionou da leitura do texto da biomédica Dra. Gisele Thame, entre outras observações, foi o fato de haver reconhecido que “A porcentagem de médicos que tem consciência dessa necessidade é muito pequena...” De outro modo, portanto, incompossível o aborto. Daqui para frente, no evolver da vida e do Direito, nada mais nos restará senão raspar o fundo da cuia e oferecer à sociedade a trilheira da melhor conduta que satisfaça a todos os envolvidos nessa trama do cotidiano.

A Conselheira do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, no Parecer Técnico protocolizado sob nº 08001.002110/2005-21, datado de 13 de fevereiro de 2006, opina, com espeque em manifestação médica, "ipsis litteris": "A medicina afirma sem margem de erro: não há possibilidade de vida fora do útero e por isso o feto que padece de anencefalia é considerado natimorto. Mais de 65% dos casos resultam em morte ainda dentro do útero. Ao lado desta constatação, lembrem-se que o nosso sistema jurídico abriga a lei dos transplantes (lei federal 9.434/97) que considera cessada a vida quando se dá a morte encefálica - de acordo com a referida legislação, a retirada de tecidos ou partes do corpo humano para transplante deve ser precedida pela morte encefálica. A resolução do Conselho Federal de Medicina, nº 1.752, de 8 de setembro de 2004, autoriza o transplante de órgãos do anencéfalo após o seu nascimento. A mesma resolução considera os anencéfalos "natimortos cerebrais" e diz que possuem "inviabilidade vital por ausência de cérebro". Assim, considerando o tratamento que o sistema jurídico pátrio confere a estas questões, o projeto de lei em análise está em perfeita sintonia com os valores vigentes em nosso meio; não há nele nenhuma inconsistência ou paradoxo.

Veja-se: Se o nosso sistema jurídico punisse a mulher cuja gravidez resultou de estupro e decide abortar; se obrigasse a mulher a sacrificar sua vida em favor da vida em gestação; se obrigasse os médicos a manter os batimentos cardíacos depois de constatada a morte cerebral; se trouxesse valores impassíveis de qualquer espécie de relativização, aí então, e só assim, a proposta em análise traria uma tremenda novidade que estaria a exigir profundo debate pois sua adoção configuraria uma mudança de padrão ético vigente em nossa sociedade. O fato é que, quando da elaboração do Código Penal, inexistia tecnologia apta a fornecer diagnósticos precisos como os atualmente disponíveis. Fosse assim, é provável que o legislador de 40 houvesse incluido no artgo 128 a proposta que agora, passados 66 anos, é capaz de causar tanta polêmica."Pois bem. No dia 13/2/2006, reunido o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, este órgão aprovou por unanimidade, no uso de suas atribuições, parecer favorável ao Projeto de Lei 4.403, da deputada Jandira Feghali, que insere o inciso III no Art. 128 do CP, “ipsis litteris”:
III – “Houver evidência clínica embasada por técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta grave e incurável anomalia que implique na impossibilidade de vida extra-uterina”.
Entretanto, somos sensíveis à emenda do deputado Rafael Guerra, uma vez que o parlamentar alveja a anencefalia, ponto nevrálgico de toda a discussão derredor de tema tão polêmico por razões legais, éticas, morais, religiosas, etc. Outros casos, a meu sentir, deverão ser apreciados de “per se”, rechaçando generalizações, essas abstrações sempre eivadas de temeridade. Sobretudo, vale a boa intenção da deputada Jandira Feghali e do deputado Rafael Guerra, o emendador.

O parecer da CNPCP, aprovando o Projeto de Lei 4.403, propiciando o aborto de anencéfalos, será encaminhado ao Congresso Nacional. Enquanto, isso, a ADPF está em curso no Supremo Tribunal Federal – STF. Congratulamo-nos com o STF, CNPCP, que se manifestou, escorreitamente, através do Parecer Técnico, Protocolo 08001.002110/2005-21, Procedência: SUPAR - ART POLÍTICA, sendo da lavra da eminente Conselheira ANA SOFIA SCHMIDT DE OLIVEIRA, que propôs, também, "in fine", a "... alteração da redação para estender a hipótese à gestante incapaz - circunstância em que a autorização será fornecida por seu representante legal e para esclarecer o tipo de diagnóstico que se espera", "ipsis litteris":
III - "quando há evidência clínica embasada em técnica de diagnóstico complementar ao da gravidez de que o nascituro apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal."
Parabenizamos, notadamente, os senhores deputados que teceram o Projeto descriminante (abolitio criminis) , Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e o Professor LUÍS ROBERTO BARROSO, ilustre advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS, o emérito vencedor (temos a certeza) dessa causa que inspira controvérsia, “a latere” da sociedade brasileira, sensível e sedenta pelo aperfeiçoamento do nosso ordenamento jurídico, considerando o evolver do mundo da vida.

Agora, recebo a feliz notícia de que o Supremo Tribunal, auscultará o que diversas entidades têm a dizer, levantando questões e opinando, sobre o polêmico tema.

Mas, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir pela suspensão de gestações de fetos anencefálicos. Certamente, algumas precauções serão impostas pelos juízes daquela Colenda Corte, com o fito de o sucesso dos procedimentos cirúrgico, sejam assegurados, tanto do ponto de vista médico, como legal. Ou seja, na gestante, serão feitos exames modernos de tomografia computadorizada - ou os que que mais apropriados se decida fazer, no caso, por uma equipe médica multifuncional - que revelarão, de forma inequívoca, a anomalia e, então, ficarão afastadas quasquer dúvida do que se trata, realmente. Ou de um feto anencefálico, o que pode por em risco a vida da gestante, afastando, ainda, a possibilidade de que fetos não anecefálicos, sejam retirados de úteros, pelo exercíco de fraudes, ou seja, oferecendo garantias sobra a sanidade, ou não, dos fetos. Todas essas comprovações, darão aos juízes do Supremo Tribunal, a tranquilidade necessária para decidirem.

O assunto, será levado a discussões em audiências públicas, cientistas, juristas, e até mesmo religiosos.

Luiz de Carvalho Ramos
Advogado

Referência:

Fonte:Site CONSULTOR JURÍDICO, 15.02.2006, disponível em http://www.conjur.com.br/
As demais fontes, constam do contexto desta manifestação.

MAGNIFICAT

[7-11-1933]

QUANDO É que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrêlas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará êste drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

(FERNANDO PESSOA / OBRA POÉTICA FICÇÕES DO INTERLÚDIO / POESIAS DE ÁLVARO DE CAMPOS )

Marco Antonio de Cádiz
DANIEL BOONE EXISTIU


Era um habitante da montanha que, num seriado exposto pela televisão, encantou gerações em todo o mundo, inclusive a minha. Nasceu em Berks Count, Pensilvânia, em 1734, morrendo em 1820. Portanto, entre os nativos norte-americanos, florestas e cidades. “Foi no dia primeiro de maio do ano de 1769 que renunciei temporàriamente à minha felicidade doméstica, deixei a família e a paz do lar às margens do rio Yadkin (seu pai, um ferreiro quaker, se estabeleceu no vale do Yadkin, na Carolina do Norte, onde Boone manteve os seus primeiros contatos com os índios cherokees), para vaguear pelo deserto norte-americano, à procura do país de Kentucky...”. Quem leu a sua autobiografia, logo, logo, há de vislumbrar a saga da colonização americana. Se dizia que ele era um homem de porte físico avantajado, sempre usando como vestimenta o fardamento amarelo-cinzento dos soldados da Revolução de 4 de julho de 1976, contra o domínio inglês, tendo como a sua principal aliada, a burguesia colonial, sedimentando a independência, constituindo os Estados Unidos da América – Massachusettes, Rhod Island, Conecticut, New Hampshire, Nova Jersey, Nova Iorque, Pensilvânia, Delaware, Virgínia, Maryland, Carolina do Sul e Geórgia, sendo, por conseqüência, o primeiro país a possuir e a submeter-se a uma Carta Política escrita.

Boone trilhava a floresta com macieza, “invisivelmente”, como os seus nativos, os índios. Sempre portando um rifle, que dominava como ninguém, com a destreza do bom atirador. Foi, assim, e sempre, que se impunha uma disciplina irreparável, diuturna, de um verdadeiro soldado, levando ao paroxismo as suas aptidões instintivas, principalmente a de defesa, além de uma confiança em si inabalável, tudo isso aliado ao seu vigor físico que o impulsionava ao desbravamento por longas horas.

O pioneiro (havia muitos outros) Daniel Boone, que o político, escritor e historiador Stewart L. Udall disse ser mais valoroso que os camponeses de Jefferson, não era considerado por aquele como um descobridor “no sentido estrito da palavra”, uma vez que outros caçadores e negociadores com os indígenas, haviam penetrado muito antes nas colinas desertas...” E, mais: “A abertura de trilheiras, feita por Boone e outros pioneiros, na década de 1770, representou nota auspiciosa em nossa história, porque coincidiu com os fatos relativos à Revolução.”

Certamente, o que movia as ações de Boone era a sua curiosidade extremada e os seus desejos mais recônditos. Apesar de todos os riscos postos à sua visibilidade, Daniel não se continha, podemos dizer, nem mesmo os queria ver. Pelo contrário, a antevisão de tudo que lhe podia ser contrário a continuar na sua caminhada itinerante, servia-lhe de estímulo para que não se detivesse. Ele sabia que encontraria à sua frente, índios ferozes em florestas virginais, animais com péssima fama, a de dilacerarem tudo que o faro lhes açulasse. Mas, ele tinha, sem dúvida, uma tendência inata para os meandros da geografia, a exemplo de tantos dos seus companheiros de viagem, e, assim, bordava o mapeamento do que aparecia e, também, do contrário, daquilo que ainda não tinha descortinado.

Lá estava Boone, a caminho dos vales do Kentucky, pelos quais, de tudo que se sabe, era um enamorado (ali passou dois invernos), pois, naquela plaga, de clima temperado, tido como o mais saudável da América, sobreexcedia a caça, não havia terrenos pantanosos, e o gado pastaria livre nos campos, sem que nenhum óbice se revelasse hostil. Enfim, só faltava banhar-se em ambrosia, aquela terra do “blue grass” (capim característico do Kentucky).

Diz o historiador Udall, que “escrever era uma habilidade que lhe faltava (a Daniel Boone), daí não dispormos de seu testamento pessoal autêntico sobre suas próprias experiências. De sua biografia, escrita por John Filson, apenas um terço reproduz a verdade.

Daniel Boone não sabia, mas “decisões sobre o futuro desse próspero território [Kentucky] estavam sendo tomadas, e a febre da especulação o envolveu [Boone] no projeto da Transylvania Land Company de, ignorando a Proclamação do Rei, apossar-se de enorme área além das montanhas e plantar nova colônia no deserto.”

Assim, em estação primaveril, Boone partiu com 29 companheiros, “pela estrada do sertão, através da garganta de Cumberland.” Boone, agora, era o agente do progresso e fundador de cidades. Isso aconteceu no ano de 1775. Pelos seus serviços, a Transylvania Land Company lhe outorgou a escritura de 100.000 acres, por ele escolhidos. Mas, Daniel Boone, não era um comerciante, então, abandonou o negócio deslocando-se para o Missouri e aceitando uma doação de terras pelo governador espanhol. À época era chamado de coronel Boone. Também, pela sua natureza, perdeu essa concessão. Mais tarde, novamente lhe sorriu o destino, quando o Congresso americano, reconhecendo os serviços à Pátria, deu-lhe como recompensa 800 acres. Mais uma vez Boone perdeu outra benesse. Devendo, vendeu a área concedida pelo Congresso, quando veio a morrer, com 85 anos, sem terras, sem nada, mas sempre um homem livre, amante dos sertões, verdadeiramente o que deixou a sua marca, a sua herança. O seu neto revelou uma afirmação do velho explorador, interessante e fidelíssima: “Eu preferia possuir uma boa espingarda e dois cães fiéis e atravessar o deserto com um ou dois índios amigos à procura de um rebanho de búfalos ou um bando de homossexual, a possuir parte das terras da cidade ou ser o governador do Estado”.

O seu epitáfio, segundo Udall, está nessa estrofe de Stephen Vincent Beneti:

“Quando Daniel Boone passa, à noite”.
Surge a caça como um fantasma
E Tudo perdido, nos seus olhos
Parece incendiar-se a América primitiva”.

Dessa forma, terminou a saga de Daniel Boone, o indômito índio branco.

Luiz de Carvalho Ramos

Referências:

Udall. Stewart L. - A Crise Silenciosa – A Tragédia do Desmatamento e da Erosão. Título no original THE QUIT CRISIS. Edições O Cruzeiro. Rio de Janeiro.1963, pp. 31 usque 42.

LULA XII

LULA XII

Je ne sais pas pourquoi je note ces petites choses; c'est peut-être l'éternel désir d'emprisionner avec des mots l'instant qui passe.

Julian Green – Journal.

"A citação nada mais é do que um pensamento coincidente em que a honestidade pôs um par de aspas”. (Monttelo. Josué. Diário do Entardecer. 1967. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 44)

Apoiado na asserção de Montello (tem quem não goste e critica, mas eu gosto de citar o que se pensa. Sinto-me constrangido, aí sim, aparentando ser inédito), insculpida no seu Diário do Entardecer, e, após reler, nesta manhã ensolarada, no dia dos que se foram para onde todos iremos, o artigo da lavra de Alceu Amoroso Lima, intitulado A Grande Opção (Revolução Suicida – Testemunho do Tempo Presente.Rio de Janeiro. Ed. Brasília/Rio, 1977. p. 189), achei por oportuno volver a 30 de setembro de 1976, e prazerosamente rememorá-lo:


"A grande opção
A democracia é um regime político baseado em três princípios fundamentais: a relatividade, a rotatividade e a reciprocidade do Poder. Segundo o princípio de relatividade política, só há um poder absoluto de autoridade, o poder de Deus. A autoridade vem de Deus para o Povo e deste é que passa às autoridades públicas que o governam. O absolutismo político, seja do Estado, seja do Povo, é incompatível com a verdadeira democracia. O poder do Estado é limitado e medido pelo Povo. E o Poder do Povo é limitado e medido pelo poder de Deus, segundo as leis morais ínsitas na própria natureza humana e os direitos inalienáveis, que pertencem a cada ser humano. O homem é anterior ao Estado. Este é uma criação do homem, derivada de sua natureza social. Portanto, a liberdade, que é um dos traços essenciais da natureza humana, como ser animal, racional e livre, precede a autoridade. Esta existe para aquela. O Estado existe para o homem e não o homem para o Estado. A autoridade não é criadora da liberdade, mas sua defensora.

Quanto ao princípio da rotatividade, é uma conseqüência lógica e prática da relatividade do Poder. Sendo este uma delegação do Povo ao Estado, é lógico e justo que essa delegação seja periodicamente renovada, para não correr o risco, natural a toda a autoridade, de passar de relativa a absoluta, pela própria continuidade de seu exercício. O uso do Poder leva naturalmente ao seu abuso. O grande publicista católico inglês, Lord Acton, lançou no século passado a conhecida frase, que se tornou clássica nos anais da política universal: o uso do poder corrompe e o do poder absoluto corrompe de modo absoluto. Daí a exigência da rotatividade no uso do poder político.

Quanto ao princípio de reciprocidade é o que regula as relações entre governantes e governados. Entre o Estado e o povo. Se aquele provém deste e seus direitos devem ser exercidos no sentido de servir ao bem comum do povo, o exercício do poder implica uma reciprocidade de direitos e deveres. Tanto o Estado tem direitos e deveres para com o povo, como este os tem perante aquele. A Justiça, que deve sempre reger as relações entre os membros individuais de uma sociedade, assim como entre os grupos sociais entre si e com os seus membros, apresenta-se sob três aspectos: cumutativo, distributivo e social. Sem entrar nas características de cada um desses tipos de justiça, o que é comum a todos é precisamente a reciprocidade. Devo dar na medida em que recebo. O cidadão tem de dar ao Estado na medida em que recebe. Se a sua liberdade racional não é garantida proporcionalmente pelo Estado, cessa o seu dever moral de respeitar a autoridade pública. Fa-lo-á apenas sob coação e sob protesto. Relatividade, rotatividade e reciprocidade são, portanto, princípios fundamentais de toda verdadeira democracia. De todo Estado de Direito. Todo regime político, que não respeite tais princípios, , está naturalmente excluído da faixa democrática. É o que acontece, na evolução da História, tanto antiga como moderna, tanto oriental como ocidental, tanto cristã como não-cristã, com três regimes políticos, particularmente nos tempos modernos e contemporâneos: a Monarquia do Direito Divino; A Ditadura do Proletariado e a Onipotência de um Chefe, Füehrer ou Duce.

Esses três tipos políticos, monarquias absolutas, comunismos e facismos, por mais opostos que tenham sido ou continuem a ser entre si, apresentam uma identidade fundamental; todos três são anti-relativistas, anti-rotativistas e anti-reciprocistas. Exercem um poder absoluto, que não é medido senão pela sua própria força, êxito e permanência. Não obedecem a nenhum preceito, implícito ou explícito, que os torne temporários. Governam para o povo, mas não pelo povo. Serão, quando muito, demófilos, como dizia Maurras [1868-1952], já que não há regime político que não procure justificar sua legitimidade, por existir para o bem do povo, mesmo quando sustentam que a sua legitimidade não vem do povo. Vem de Deus, nas monarquias absolutas. Vem de uma classe onipotente, que se libertou da opressão, como a Classe Proletária, segundo alega o materialismo histórico. Vem da vontade de um Chefe Supremo e Carismático, que se sente investido do Poder, pela vontade subconsciente do povo, na realização histórica de seus destinos, e pelos direitos inerentes, como alegam, às personalidades carismáticas e aos direitos supremos da autoridade como criadora da liberdade. São esses os pressupostos, conscientes ou subconscientes, de todos os regimes não democráticos ou antidemocráticos, isto é, totalitários.

Acontece que, recentemente, entre nós, uma eminente autoridade pública, ao assumir um alto cargo militar pronunciou, no seu discurso de posse, as seguintes palavras: “Aspiramos, desejamos mesmo ardentemente, viver num regime democrático, posto que a democracia está na consciência e índole do nosso povo (sic). Todavia, a democracia que vislumbramos não é necessariamente tíbia, omissa, rastejante, pusilânime e inerme, que treme à simples citação de slogans pré-fabricados, tendo por base, capciosamente, liberdade e direitos humanos. Esquecem, ou melhor, propositadamente esquecem os trêfegos defensores dessa linha, aos menos avisados, que a liberdade e direitos emanam do Estado (sic). Este, sim, é que outorga ao homem tais privilégios” (sic) (J.B., 11/09/75).

Ora, como sou um dos “trêfegos defensores” dessa linha democrática, considero que há uma contradição manifesta entre essa índole democrática do nosso povo, que é uma realidade histórica, e a linha antidemocrática de considerar “que liberdade e direitos emanam do Estado. Este sim, é que outorga ao homem tais privilégios”. Acontece que os regimes políticos que não consideram os direitos dos cidadãos como inerentes à personalidade humana mas como simples “privilégios” concedidos pelo Estado, são os regimes absolutistas e totalitários. Sempre que um Estado se arroga a condição de ser o outorgante da liberdade, em vez de ser a sua garantia estamos em face de uma formal negação da democracia. De modo que o povo brasileiro, para ser fiel à sua índole democrática, terá de optar entre um regime em que o Estado seja o defensor e não o criador dos seus direitos e um daqueles três que sustentam o contrário, isto é, uma Monarquia Absoluta, uma Ditadura do Proletariado ou um Chefe Onipotente..."

Pois é. Ontem, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB mostrou-se contrária à Proposta de Emenda Constitucional - PEC, que propugna por reeleições para cargos majoritários. Claro, todos eles desejam, ardentemente, o abuso, mesmo que se lambuzem na contumácia das artimanhas e engessem o curso natural dos destinos das criaturas. São os pedófilos (não os amigos, mas os tarados) que assim tentam desmoralizar a nossa novel, engraçada democracia.

Mas, para não perdermos o trem, mister se faz que digamos sem delongas: mesmo que o presidente Lula não aceite a reinação trienal que lhe vendem as vivandeiras (como vozeira um amigo), outro brasileiro, também mui amigo, afinado com todo o seu ideário, lhe sucederá, podendo até vir a ser algum um contrário "de araque", que mantenha livre trânsito no estabilishiment e receba o "nihil obstat".

Bahia, 02 de novembro de 2007.



Luís D'Avelosa



LUMINOSIDADE E ESPERANÇA

“Toma cuidado com o homem e com o rio silenciosos.” – Ab homine et flumine taciturno cave. (Dicionário de Expressões e Frases Latinas – Compilado por Henerik Kocher,
www.hkocher.info/minha_pagina/dicionário/0dicionário

O Direito é dinâmico, ausculta a realidade do mundo da vida. “O que a lei quer, di-lo com precisão”, ensinava Pontes de Miranda. A Lei de Biossegurança quer estar na crista da evolução. A terapêutica com células-tronco (Art. 5º da Lei de Biossegurança) é um milagre da ciência e da tecnologia.

A Lei de Biossegurança, n° 11.105, de 24.03.2005, estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre o que especifica no Art. 1°, saiu da pantalha e alumiou o destino, os sentimentos e desejos de seres humanos que dependem da terapia com células-tronco ou "células polivalentes que se transformam em qualquer parte do corpo”, afastando a cronicidade e degeneração, portanto, suprimindo a irreversibilidade do mal que os acomete, defendendo o direito à vida do homem universal.

Além do mais, essa descoberta dos coreanos do sul afastou o risco da rejeição, o grande vilão, uma vez que a criação dos órgãos para o respectivo transplante será feito a partir de extratos do próprio paciente. Para aqueles que não estão familiarizados com o significado das células-tronco, esse milagre da natureza, ouçamos o entendimento dos doutos. Com nuanças personalíssimas, manifesta-se a Profª Mayana Zatz respondendo às seguintes questões:

O que é célula-tronco?

É um tipo de célula que pode se diferenciar e constituir diferentes tecidos no organismo. Esta é uma capacidade especial, porque as demais células geralmente só podem fazer parte de um tecido específico (por exemplo: células da pele só podem constituir a pele).

Outra capacidade especial das células-tronco é a auto-replicação, ou seja, elas podem gerar cópias idênticas de si mesmas.Por causa destas duas capacidades, as células-tronco são objeto de intensas pesquisas hoje, pois poderiam no futuro funcionar como células substitutas em tecidos lesionados ou doentes, como nos casos de Alzheimer, Parkinson e doenças neuromusculares em geral, ou ainda no lugar de células que o organismo deixa de produzir por alguma deficiência, como no caso de diabetes.

As células-tronco são classificadas como:

Totipotentes ou embrionárias - São as que conseguem se diferenciar em todos os 216 tecidos (inclusive a placenta e anexos embrionários) que formam o corpo humano. Pluripotentes ou multipotentes - São as que conseguem se diferenciar em quase todos os tecidos humanos, menos placenta e anexos embrionários. Alguns trabalhos classificam as multipotentes como aquelas com capacidade de formar um número menor de tecidos do que as pluripotentes, enquanto outros acham que as duas definições são sinônimas.

Oligopotentes - Aquelas que conseguem diferenciar-se em poucos tecidos. Unipotentes - As que conseguem diferenciar-se em um único tecido. Quais as funções naturais das células-tronco no corpo humano? Elas funcionam como células curingas, ou seja, teriam a função de ajudar no reparo de uma lesão. As células-tronco da medula óssea, especialmente, têm uma função importante: regenerar o sangue, porque as células sangüíneas se renovam constantemente.


Onde ficam as células-tronco?

As células-tronco totipotentes e pluripotentes (ou multipotentes) só são encontradas nos embriões.

As totipotentes são aquelas presentes nas primeiras fases da divisão, quando o embrião tem até 16 - 32 células (até três ou quatro dias de vida).

As pluripotentes ou multipotentes surgem quando o embrião atinge a fase de blastocisto (a partir de 32 -64 células, aproximadamente a partir do 5.o dia de vida) - as células internas do blastocisto são pluripotentes enquanto as células da membrana externa do blastocisto destinam-se a produzir a placenta e as membranas embrionárias.

As células-tronco oligopotentes ainda são objeto de pesquisas, mas podemos dizer como exemplo que são encontradas no trato intestinal.

As unipotentes estão presentes no tecido cerebral adulto e na próstata, por exemplo. O que torna a célula-tronco capaz de formar um tecido ou outro? A ordem ou comando que determina, durante o desenvolvimento do embrião humano, que uma célula-tronco pluripotente se diferencie em um tecido específico, como fígado, osso, sangue etc, ainda é um mistério que está sendo objeto de inúmeras pesquisas.

O que é terapia com células-tronco?

É uma terapia celular para tratar doenças e lesões através da substituição de tecidos doentes por células saudáveis. Por exemplo, o transplante de medula óssea para tratar pacientes com leucemia é um método de terapia celular já conhecido e comprovadamente eficiente. A medula óssea do doador contém células-tronco sangüíneas que vão fabricar novas células sangüíneas sadias. A terapia com células-tronco poderá no futuro tratar muitas doenças degenerativas, hoje incuráveis, causadas pela morte prematura ou mau-funcionamento de tecidos, células ou órgãos. Como exemplo, podemos citar as doenças neuromusculares, diabetes, doenças renais, cardíacas ou hepáticas. Para isso, estão sendo feitas inúmeras pesquisas no mundo todo para descobrir como fazer as células-tronco se diferenciarem no tecido que está doente.

É possível programar as células-tronco para que se diferenciem nos tecidos que precisam ser reparados?

Existem substâncias ou fatores de diferenciação que, quando colocados em culturas de células-tronco in vitro (isto é, cultivadas em laboratório), determinam que elas se diferenciem em um certo tecido. Uma outra possibilidade que está sendo investigada é se células-tronco, em contato com um tecido diferenciado, transformam-se naquele tecido. Por exemplo: células-tronco obtidas de embriões, cordão umbilical ou medula, se colocadas em contato com um músculo, conseguem diferenciar-se em músculo? Isso já foi demonstrado com células-tronco embrionárias, mas ainda não sabemos qual é o potencial que células-tronco de sangue de cordão (adultas) têm de se diferenciar em vários tecidos. Essa é uma das pesquisas em andamento no nosso laboratório, com células-tronco obtidas de cordão umbilical que estão sendo cultivadas juntamente com células musculares. Trata-se ainda de pesquisas experimentais e que ainda não constituem um tratamento comprovado a ser aplicado em seres humanos.

Como é o uso de células-tronco adultas?

As células-tronco adultas são encontradas em vários tecidos (como medula óssea, sangue, fígado, polpa dentárea) de crianças e adultos, e também no cordão umbilical e na placenta. Entretanto, ainda não sabemos em que tecidos elas são capazes de se diferenciar. Um estudo recente com células-tronco retiradas da medula e injetadas no coração da própria pessoa, o auto-transplante, sugere uma melhora aparente do quadro clínico em pessoas com insuficiência cardíaca. Mas a questão é se essas células são capazes de formar tecido cardíaco ou só promover uma neo-vascularização (fabricar novos vasos sangüíneos). De qualquer forma, a maior limitação quando usadas células da própria pessoa é que não serviria para portadores de doenças genéticas, pois o defeito está presente em todas as células daquela pessoa.

Como é o uso de células-tronco de embriões?

As pesquisas com células-tronco embrionárias estão sendo feitas nos países que permitem esses estudos. As células-tronco embrionárias têm o potencial de formar todos os tecidos humanos. Elas podem ser retiradas de: a) embriões excedentes que são descartados em clínicas de fertilização, por não terem qualidade para implantação ou por terem sido congelados por muito tempo; b) pela técnica de clonagem terapêutica.

O que é clonagem terapêutica celular?

É a transferência de núcleos de uma célula para um óvulo sem núcleo. Ela nada mais é do que um aprimoramento das técnicas hoje existentes para culturas de tecidos, que são realizadas há décadas. A grande vantagem é que, ao transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa para um óvulo sem núcleo, esse novo óvulo ao dividir-se gera, em laboratório, células potencialmente capazes de produzir qualquer tecido. Isso abre perspectivas fantásticas para futuros tratamentos, porque hoje só é possível cultivar em laboratório células com as mesmas características do tecido de onde foram retiradas.

A clonagem terapêutica teria a vantagem de evitar rejeição, se o doador fosse a própria pessoa. Seria o caso, por exemplo, de reconstituir a medula em alguém que se tornou paraplégico após um acidente ou substituir o tecido cardíaco em uma pessoa que sofreu um infarto. No caso de portadores de doenças genéticas não seria possível usar as células da própria pessoa (porque todas têm o mesmo defeito genético), mas de um doador que fosse compatível, por exemplo, a mãe de um afetado por distrofia muscular progressiva. Cientistas coreanos anunciaram ter clonado embriões humanos, pela primeira vez, para obter células-tronco. Isso é clonagem terapêutica? Sim. O estudo confirmou a possibilidade de obter células-tronco pluripotentes com a clonagem terapêutica ou transferência de núcleos. O trabalho foi feito graças à participação voluntárias que doaram óvulos e células cumulus (células que ficam ao redor dos óvulos) para contribuir com as pesquisas.

As células cumulus, que já são células diferenciadas, foram transferidas para os óvulos dos quais haviam sido retirados os próprios núcleos. Dentre esses, 25% conseguiram se dividir e chegar ao estágio de blastocisto e, portanto, capazes de produzir linhagens de células-tronco pluripotentes. Entretanto, essa técnica só teve sucesso quando a célula cumulus e o óvulo pertenciam à mesma mulher. Os pesquisadores coreanos relatam também que não obtiveram sucesso quando usaram células masculinas, o que mostra que essa técnica ainda tem limitações.

Qual é a diferença entre clonagem terapêutica e clonagem reprodutiva?

A clonagem reprodutiva humana, condenada por todos os cientistas, é a técnica pela qual pretende-se fazer uma cópia de um indivíduo. Nessa técnica, transfere-se o núcleo de uma célula, que pode ser uma célula de um adulto ou de um embrião, para um óvulo sem núcleo. Se o óvulo com esse novo núcleo começasse a se dividir, fosse transferido para um útero humano e se desenvolvesse, ter-se-ia uma cópia da pessoa de quem foi retirado o núcleo da célula. A diferença fundamental entre os dois procedimentos é que:

1) Na transferência de núcleos para fins terapêuticos as células são multiplicadas em laboratório para formar tecidos;

2) A clonagem reprodutiva humana requer a inserção em um útero humano.

Por que a clonagem terapêutica é um assunto polêmico?

Toda tecnologia nova gera polêmicas. Os argumentos das pessoas que se opõem à clonagem terapêutica são: isso vai abrir caminho para a clonagem reprodutiva, isso vai gerar um comércio de óvulos e embriões. Nesse sentido é fundamental lembrar que existe um obstáculo intransponível, que é o útero. Basta proibir a transferência para o útero de embriões produzidos por clonagem terapêutica. Quanto ao comércio de óvulos ou embriões, é a mesma situação que ocorre hoje com comércio de órgãos. Qualquer tecnologia tem seus riscos e benefícios. (Mayana Zatz, professora titular de Genética, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano - Depto. de Biologia, Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo - USP). Agência Estado.

Entretanto, essas descobertas que trouxeram a esperança de vida a quem não mais possuía são alvo de críticas, sendo que a mais contundente argumenta que o uso de embriões "interrompe o desenvolvimento do que seria uma vida humana". Por outro lado, uma geneticista que coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP) e "que se deslocou até Brasília para convencer os senadores a alterar o Projeto de Lei de Biossegurança", Professora Doutora Mayana Zatz, argumenta com conhecimento de causa:

"Muita gente não sabe que poderíamos usar os embriões que clínicas de inseminação artificial jogam no lixo a todo momento, já que os médicos aproveitam só os melhores para implantar no útero de quem quer engravidar" (Cláudia Pinho – Colaborou Mariana Barros - Revista ISTOÉ, n° 1793, 18 de fevereiro/2004, p. 68/69).

Dessa forma, continua:

"No Brasil, o debate ético sobre o uso da técnica de clonagem terapêutica, foi atropelado pelo desconhecimento". Mas , felizmente o saber, como sempre, foi o vencedor e está aí para o benefício, para revitalizar o homem à beira da inumação, a nossa Lei de Biossegurança.

Ainda no campo da argumentação, juristas de renome, invocando a Constituição Federal (Art. 5º), o Código Civil (Art. 2º) e até mesmo pactos internacionais (§ 3º, Art. 5º da CF), colocam em discussão a questão da manipulação de células-tronco. Não só juristas e cientistas, mas, outras instituições e a religiosidade, percuciente na defesa dos seus dogmas.

Realmente, é um tema polêmico que inspira diversas manifestações. E isso é bom sinal, pois, percebemos que num mundo em que se cultua a morte, existem pessoas preocupadas com a vida. E na defesa da vida plena, digna, saudável (como conceitua a Organização Mundial da Saúde–OMS), aquela mesma que interpretamos ser a que nos comunica a Carta Política (Art. 5º), os esforços devem alcançar a exaustão.

O que nos parece fundamental é a inexorabilidade do Direito evolver; a impossibilidade absoluta de frustrar essa destinação pelo bem da humanidade. O que ontem parecia uma absurdez, uma utopia, uma impossibilidade científica, hoje é razoável e revela bom senso. Não se pode negar o avanço da Lei de Biossegurança que haverá de evoluir, por seu turno, quando se apresentarem impositivas, recalcitrantes, as exigências do dia-a-dia. A grandeza do legislador que, sabiamente, não olvidará a dimensão evolutiva da ciência e da tecnologia. Declara o Dr. Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, verbis:

"Se não investirmos nessa pesquisa, no futuro teremos de importar remédios que vão salvar a vida das mesmas famílias religiosas que hoje condenam a clonagem terapêutica" (Revista ISTOÉ, 1793, p. 69). Daí entendermos que o legislador se houve muito bem na elaboração da referida lei, aprovada, sancionada e promulgada. Referências hospitalares se empenham em pesquisas. “No Hospital Pró-Cardíaco no Rio de Janeiro, e no Instituto do Coração, em São Paulo, por exemplo, seguem promissores experimentos com células-tronco para recuperar o coração. No Hospital Albert Einstein, também em São Paulo, estudos são feitos para diabete e esclerose múltipla. Em todos os trabalhos, as células usadas são retiradas de cordão umbilical ou de medula óssea. Só agora é que os centros de pesquisa poderão ter acesso às células extraídas de embriões, as únicas com potencial para se transformar em qualquer um dos 216 tecidos do corpo humano”. (Eduardo Hollanda – Revista ISTOÉ, nº 1847, 9 de março/2005, p. 35).

No mesmo meio de comunicação, se manifesta o cientista Ricardo Ribeiro dos Santos, declarando:

“Temos que ter os pés no chão”, um alerta para a exacerbação de expectativas hipertrofiadas, portanto, carentes da virtude da paciência e do bom senso imprescindível.

“No início de junho, será iniciado o Estudo Multicêntrico de Terapia Celular em Cardiologia, trabalho que envolverá 50 instituições, cerca de 350 especialistas, 1,2 mil portadores de quatro graves problemas do coração e um financiamento de R$13 milhões do governo. De acordo com o Ministério da Saúde, é a maior investigação do gênero feita no mundo” (Francisco Alves Filho, Greice Rodrigues e Lena Castellón, Revista ISTOÉ, nº 1859, JUNHO/2005).

Esperamos, enfim, para a solução instante dos nossos males, que todos os retrógrados, os de postura intelectual e espiritual retroflexa, sectária, se lembrem ou relembrem de que "O Direito vigente não contém só um pensamento morto; ao contrário: o seu espírito evolve, é vivo, atual... A fim de descobrir o alcance eminentemente prático do texto, coloca-se o intérprete na posição do legislador: procura saber por que despontou a necessidade e qual foi primitivamente o objeto provável da regra, escrita ou consuetudinária; põe a mesma em relação com todas as circunstâncias determinantes do seu aparecimento, as quais, por isso mesmo, fazem ressaltar as exigências morais, políticas e sociais, econômicas e até mesmo técnicas, a que os novos dispositivos deveriam satisfazer; estuda, em suma, o ambiente social e jurídico em que a lei surgiu; os motivos da mesma, a sua razão de ser; as condições históricas apreciáveis como causa imediata da promulgação. Enquadram-se entre as últimas os precedentes, em geral; as concepções reinantes, além de outras influências menos diretas e não menos eficazes, como certos fatos ocorridos no estrangeiro e as legislações de povos cultos. Deve-se supor que os elaboradores do Direito novo conheciam o meio em que viviam, e o espírito da época, e se esmeraram em corresponder, por meio de providências concretizadas em textos, às necessidades e aspirações populares, próprias no momento, bem como às circunstâncias jurídicas e sociais contemporâneas... O bom intérprete foi sempre o renovador insinuante, cauteloso, às vezes até inconsciente, do sentido das disposições escritas – o sociólogo do Direito... Cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor, e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a proteger”. (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª edição, 1979).

No dia 20.4.2007, aconteceu a audiência pública no auditório do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do eminente ministro Professor Carlos Ayres Britto, objetivando colher informações científicas para o julgamento da ADIN, proposta pela PGR contra a utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias. Naquela oportunidade, Patrícia Pranke, neurocientista e pesquisadora-chefe da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, noticiou que somente a partir do 4º dia o embrião pode ser implantado no útero. Revelou, ainda, que os embriões inviáveis, sem qualidade alguma, “nem chegam a ser congelados por algumas clínicas”, e pergunta: “Então, por quê não doá-los para a pesquisa?”.

A doutora Lúcia Braga, presidente do Instituto de Pesquisa com células-tronco e diretora do Banco de Sangue de Cordão Umbilical do Ministério da Saúde, não fez por menos e disse que se preocupa com o impedimento de pesquisas com este tipo de célula: “Precisamos dar mais chance às pessoas”.

A Professora Doutora Mayana Zatz, como era de se esperar, afirmou que, futuramente, o tratamento de doenças degenerativas, far-se-á com a utilização de células-tronco embrionárias, e mais, que uma célula-tronco embrionária só poderá se tornar um feto se inserida no útero por iniciativa humana.

Da parte contrária, a professora-adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, Dra. Lenice Aparecida Martins e o professor Marcelo Vacari Mazzetti, vice-presidente do Instituto de Pesquisa de Células-Tronco, argumentaram que a vida tem início na fecundação. Declarou o professor Mazzetti que “não há fato objetivo e concreto que confirme a utilidade de células-tronco embrionárias”, e mais: “Não é preciso interromper a vida para trabalhar com células-tronco.”

Entre os 34 especialistas presentes, Instituições como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil –CNBB e Procuradoria Geral da República – PGR, fizeram-se representar na Audiência Pública.*

Professora MAYANA ZATZ

“Uma das pioneiras no mundo no estudo das doenças neuromusculares, Mayana Zatz está entre os cientistas mais produtivos e destacados do Brasil. Professora titular de genética humana da USP, coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP e é fundadora e presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular (ABIM).

Coordena um grupo de pesquisas em biologia molecular de genes humanos com enfoque em doenças neuromusculares e sua equipe colaborou para a identificação de seis genes responsáveis por doenças nesta área.

Já publicou 260 trabalhos científicos em revistas internacionais e nacionais. Sua atividade na área de saúde tem grande importância social. É responsável por um serviço de Aconselhamento Genético na USP, que já atendeu mais de 21 mil pessoas pertencentes a famílias com afetados por doenças neuromusculares, o que tem contribuído para diagnosticar e pevenir o nascimento de novos portadores de doenças irreversíveis, para as quais não há tratamento.

Mayana Zatz sempre se preocupou com a parte ética da pesquisa e, em particular, a informação gerada pelo projeto Genoma Humano e clonagem humana. Defende pesquisas com células-tronco embrionárias para compreensão da biologia celular e para fins terapêuticos, tendo participado ativamente de processo de votação da Lei de Biossegurança, que permite estas pesquisas.”


Nessas condições, sem dúvida, a intenção do legislador foi buscar na evolução científica a suportabilidade para os suplícios que acometem a humanidade, impulsionado pelos milagres que abrolham da ciência e da tecnologia hodiernas, reconhecendo o direito sagrado a uma vida plena, íntegra, longeva. Em assim sendo, é uma exigência legítima que nos é defeso olvidar.

Células-tronco – continuação


Agora, junho de 2008, o Supremo Tribunal Federal-STF, que, desde o ano de 2005 (ano de aprovação, pelo Congresso da lei de biossegurança), esperava a oportunidade de decidir sobre a proposição do procurador-geral da República, assentada nos autos de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) que pretendia inibir, definitivamente, os efeitos do Art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei Nº 11.105, de 24 de março de 2005), ipsis litteris:


Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou


II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.


§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.


§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.


As discussões se sucederam, com a profundidade e polêmica que a quaestio suscita. Os ministro da Corte Suprema se pronunciaram, na sua maioria, e resolveram rechaçar a pretensão do Ministério Público Federal, alcançando o desiderato, o que a ciência nos oferece de tábua de salvação.


Uma das suas mais aguerridas defensoras, não poderia ser outra pessoa senão a bióloga Mayana Zart, supracitada, que propugnou pela aprovação do predito texto legal, especificamente o que predetermina o seu Art. 5º. E, nesse diapasão, a pró-reitora de pesquisa e coordenadora de Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo-USP, manifestou-se dizendo:


“Essa proibição é absurda. Inviolável é a vida de inúmeros pacientes que morrem prematuramente ou estão confinados a uma cadeira de rodas e poderiam se beneficiar dessas pesquisas. É preciso entender que os cientistas brasileiros só querem fazer pesquisa com os embriões congelados que permanecem nas clínicas de fertilização, e sempre com o consentimento do casal que os gerou. Se o casal, por algum motivo religioso ou ético, for contra a doar os embriões, não precisará faze-lo. Deve-se lembrar que o destino dos embriões que não forem utilizados na pesquisa é ficar congelados até ser descartados. Estamos falando de embriões que nunca estiveram num útero, nem nunca estarão. Não existe nenhuma possibilidade de vida para eles.” (Revista Veja, edição 2050 – ano 41 – nº 9, 5 de março de 2008, p. 11).


A eminente juíza do STF, eminente ministra Ellen Gracie Northfleet, um pouco mais tarde, em entrevista à referida Revista Veja (edição 20051 – ano 41 – nº 10, 12.03.2008, p. 11), manifestou-se dizendo:

“Eu não enxerguei, nos artigos da Lei de Biossegurança que falam sobre embriões, nada que ferisse a ordem constitucional. Meu raciocínio parte do princípio de que nosso sistema jurídico protege duas entidades, o “nascimento” e a “pessoa”. Esses conceitos têm um significado muito preciso no direito. O nascituro, a criança que aguarda o nascimento no ventre da mãe, tem algumas expectativas de direito – no campo da herança, por exemplo. Já a pessoa, do ponto de vista do nosso ordenamento, só passa a existir no instante do nascimento com vida. É aí que surge a personalidade jurídica, segundo o nosso Código Civil. Ora, o embrião criado in vitro não é nascituro, pois não foi implantado no útero da mãe, nem pessoa, no sentido técnico. Ele não desfruta as garantias que se aplicam aos dois casos. Quanto ao princípio constitucional do direito à vida, eu creio que ele não é ferido no caso das pesquisas com embriões que seriam descartados ou permaneceriam congelados indefinidamente. Essas pesquisas, a médio ou a longo prazo, devem resultar em benefício para um grande número de pessoas. Elas também têm o objetivo de proteger a vida – uma vida íntegra e saudável para portadores de doenças. Sigo aqui uma linha de raciocínio que tem uma longa história no campo jurídico – aquela que, no conflito aparente entre normas, opta pelo bem maior, produzido com o menor sacrifício possível.”


Vê-se, portanto, e felizmente, que a ciência e a lei, bem postas, somente trazem benefícios para a humanidade. Despiciendo, então, delongarmo-nos em outros argumentos.


Marco Antonio de Cádiz


Referências:

• Diário do Nordeste - www.diariodonordeste.globo.com • www.hospitalar.com/imprensa/not 1497.html


UM HUMANISTA SACRIFICADO


“A abundância sendo extrema, em todas as coisas, não se teme que alguém tire além de suas necessidades. De fato aquele que tem a certeza de que nada faltará jamais, não procurará possuir mais do que é preciso. O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces é o temor das privações do futuro. No homem em particular, existe uma outra causa de avareza – o orgulho, que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais e a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo. Mas as instituições utopianas tornam este vício impossível.” (THOMAS MORE. UTOPIA. 2ª edição. 1979. p. 235)

THOMAS MORE, nasceu no dia 7 de fevereiro de 1478, em Milk Street, Londres, Inglaterra. Os seus primeiros estudos foram feitos no Saint Antony's School, tornando-se, logo após, pajem do arcebispo de Canterbury, John Morton (1420-1500), que influenciou decisivamente a sua vida intelectual. Dez anos antes de morrer, o arcebispo o encaminhou à universidade de Oxford, onde deu início aos seus estudos de Direito, pari-passu, aplicando seu espírito no aprendizado de teologia, literatura grega e latina, além de poetizar em inglês e latim, oportunidade em que traduziu quatro dos trinta Diálogos dos Mortos de Luciano de Samósata, de origem síria, mas radicado na Grécia (séc.II d.C). Nos seus Diálogos, “Diógenes é, ao lado de Menipo (filósofo cínico), o mais cínico dos cínicos, o personagem central. Trata-se de trinta diálogos que reúnem as figuras mais famosas da hélade antiga sob o signo da sátira, do humor e da ironia mais rascante”, inclusive biografando a vida de Giovanni Francesco Pico della Mirandola, filósofo italiano (1463-1494). Estudou teologia, grego, hebraico, latim, sírio e árabe. Um dos seus desejos era reconciliar Cristo e Maomé. Escreveu diversos livros e, como Luciano, viveu intensamente.

Após a morte de sua primeira mulher Jane Colte, com quem gerou quatro filhos, casou-se, para o seu fado, certamente, com Alice Middleton, uma pessoa avessa à vida intelectual, embora não fosse frívola ou incuriosa, ou memo inábil com relação aos afazeres domésticos e sociais. Em 1504, iniciou a sua carreira parlamentar, abraçando a política até a sua morte. Com a disciplina aplicada aos seus estudos e modus vivendi estóico, que lhe forjou a personalidade com “inflexibilidade de caráter e irremovíveis convicções religiosas”, aproximou-se, com a morte de Henrique VII (1509), que viveu 52 anos, do rei Henrique VIII, o celerado absolutista que viria a ascender ao trono inglês naquele mesmo ano, seu admirador e futuro carrasco ingrato, injusto e inclemente.



Assumindo diversas posições e missões diplomáticas da mais alta envergadura, veio a suceder o Lord-Chanceler cardeal Wolsey (1529), portanto, alçado ao mais alto cargo do governo britânico, onde desempenhou as altas funções que lhe foram cometidas com absoluta dedicação, probidade, tolerância, altruísmo e altivez, sendo justo para com todos e leal ao endemoninhado rei que, como predisse, nutria por ele incondicional respeito e admiração, não prescindindo dos seus sábios ensinamentos e aconselhamentos, pela erudição e bom-senso.

O homem Thomas More, além de parlamentar de escol, está glorificado pelo seu autêntico humanismo renascentista, tendo como madre os seus estudos de línguas e literaturas greco-romanas, revelados en passant, com clareza e circunspecção necessárias, na sua obra UTOPIA. Todos nós, mundializados (como dizem os franceses) ou globalizados, podemos nela auferirmos ensinamentos que muito nos servirão.

Dessa forma, nessas manifestações que o imortalizaram pelo antropocentrismo, ele abominava tudo que era contrário ao bom viver coletivo, ao epicurismo com uma pitada contida de hedonismo, este inclusive para perpetuar a espécie humana por ele imaginada e desejada, que praticava o bem pelo bem. Sentia no mais íntimo de si mesmo, numa transparência vitral, os malefícios de uma sociedade que se permitia concentrar a propriedade fundiária numa emulação desordenada, trituradora, em detrimento de uma esmagadora maioria de hipossuficientes, famélicos, criminalizados e violentados por castigos instituídos.

Ao contrário, dizia:

“Os habitantes da UTOPIA aplicam aqui o princípio da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.” Diferentemente do que acontece em sociedades plantadas em nosso século, notadamente em nossa Pindorama, onde os doentes morrem nas filas que se alongam à frente das instituições de saúde do Estado, “Os doentes são aí tratados (nos hospitais) com cuidado afetuoso e assíduo, sob a direção dos mais hábeis médicos. Ninguém é obrigado a ir para lá; entretanto, não há quem, em caso de doença, não prefira tratar-se no hospital a tratar-se em sua casa.” Entretanto, o despotismo é sem-cerimônia e não tem solução uma vez enraizado – a não ser com a revolução e a deposição instante do déspota.


Para alguns historiadores, Henrique VIII procura em sua casa o chanceler, usando de zumbais, argumentos infundados, simplórios, e o Lord-Chanceler, após ouvir o monarca voluntarioso, nega qualquer ingerência no sentido de fazer a vontade do rei, que não era outra senão a de construir trilheiras indecorosas, expedientes cavilosos e incompatíveis com o caráter altivo de Thomas More, no caso, o de assinar o Ato de Sucessão, declarando sem efeito o casamento legítimo com Catarina de Aragão, a Espanhola, o que convalidava o seu matrimônio com Ana Bolena, pensando sempre na sua sucessão. Aqui, os fins justificam os meios. A maioria dos historiadores diz o seguinte: o Papa Júlio II, como sabia que o casamento (1501) de Catarina de Aragão com Artur Tudor, Príncipe de Gales, não havia se consumado, por testemunho de Catarina, ou seja, o débito conjugal não havia sido saldado, por morte do Príncipe de Gales, a dispensou para casar-se com o seu cunhado Henrique, o que se deu com a ascensão deste ao trono, oito anos depois, em 1513. Após gestações frustadas, “Catarina deu à luz um rapaz, Henrique, que morreu pouco tempo depois. A sua última gravidez em 1516 resultou numa filha, a futura Maria I da Inglaterra. Depois de Maria, Catarina não voltou a conceber, o que deixou Henrique preocupado com a sucessão. A guerra das rosas (guerra civil inglêsa, 1455-1485, entre as Casas de York e Lancaster) como consequência de instabilidade dinástica estava ainda bem presente na memória colectiva. Particularmente preocupante para Henrique, um estudioso de questões teológicas, era a afirmação contida no Levítico de que se um homem casar com a mulher do irmão, o casamento será estéril. Convencido de que Catarina teria mentido quanto à consumação do casamento com Artur, Henrique VIII começou a procurar a anulação do casamento em 1527. Ao mesmo tempo, arrancara de Ana Bolena a promessa de que ela seria sua amante e futura mulher. No Vaticano a tomada de decisão arrastou-se por sete anos.

O Papa Clemente VII não parecia disposto a conceder a anulação por duas razões: primeiro seria uma admissão de equívoco da Igreja que concedera a dispensa, segundo porque Clemente era uma marionete política nas mãos do Imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, a quem não convinha o fim da união. Cansado de esperar, Henrique separou-se de Catarina em 1531 e em 23 de Maio de 1533, o Arcebispo da Cantuária Thomas Cranmer anulou a união sem aprovação do Vaticano. A implementação do Acto de Supremacia e a separação da Igreja Anglicana da Igreja de Roma consumou a anulação. Catarina foi separada da filha, a princesa Maria, e exilada da corte para viver na província, embora com todos os previlégios de uma Princesa de Gales. Mas jamais aceitou o divórcio e a despromoção e continuou a assinar a correspondência como Catherine the Queen. Catarina morreu em Janeiro de 1536, vítima de uma doença prolongada, possivelmente cancro, e foi sepultada na Catedral de Peterborough com as honras de uma Princesa de Gales.

A intransigência de Thomas More, valeu-lhe a prisão na Torre de Londres, onde escreveu o “Diálogo de Consolo Contra a Opressão, no qual confortava todos aqueles que, como ele, sofriam por causa de princípios religiosos e de consciência, e negava o direito de qualquer chefe de Estado ditar leis em matéria de crença. Na sua crença manteve-se firme, até a condenação final à morte por decapitação, em 6 de julho de 1535. Beatificado em 29 de dezembro de 1886, foi canonizado em 19 de maio de 1935, quatro séculos depois de seu martírio em defesa da liberdade de pensamento".

Ana Bolena ou Anne Boleyn, Marquesa de Pembroke (1550-1536), foi a segunda mulher de Henrique VIII de Inglaterra e mãe da rainha Elizabeth I, a inupta. O seu casamento com Henry foi polêmico do ponto de vista político e religioso. (...) A ascensão e queda de Ana Bolena, considerada a mais controversa rainha consorte de Inglaterra, inspiram inúmeras biografias, obras ficcionais. Ana Bolena foi decapitada a 19 de maio de 1536 e onze dias depois, pela terceira vez, Henrique VIII casou-se com Joana Seymour. Um dos fiéis amigos de Thomas More foi Erasmo de Rotterdam, também humanista, que lhe dedicou a extraordinária sátira Elogio da Loucura, no ano de 1508.

Procuremos na comedida, altruísta e corajosa vida alumiada de São Thomas More, o estímulo para contornarmos as tramas do cotidiano.

As demais esposas de Henrique VIII:






Luís D'Avelosa


Referências:
ERASMO/THOMAS MORE – ELOGIO DA LOUCURA/UTOPIA, Os Pensadores, Abril Cultural, 2ª edição, 1979, pp.154-158, Tradução e notas Paulo M. Oliveira/Luís Andrade; MÁRCIO SCHEEL – Contra a Tradição: A Contradição, 2003.
Fonte:
www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=25702&cat=Artigos;
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Bolena PICO della MIRANDOLA –
planeta.terra.com.br/arte/sfv/PicodellaMirandela.html – Tradução & Adições: FELIPE VILLANOVA

ITAPARICA II

Vamos deixando o século XVI a caminho do século XVII, sempre em companhia de Ubaldo Osório e outras fontes. Nosso intuito não é o de fazermos crítica histórica, nos aprofundarmos no pensamento de outros notáveis historiadores, nem almejamos glórias ou reconhecimentos. Basta-nos espanarmos um pouco da poeira de um passado “recente”. Tudo isso é muito evidente. Entretanto, gostaria de dizer um pouco dos nossos três primeiros governadores gerais, antes de adentramos no século XVII: o primeiro, Tomé de Souza; o segundo, Duarte da Costa; o terceiro, Mem de Sá.

Em 21 de março de 1549, Tomé de Souza foi recebido juntamente com a sua comitiva, formada de centenas de colonos, religiosos e degredados, pelo fidalgo da Casa Real Diogo Álvares, o Caramuru, seus filhos e Gramatão Teles, o portador da carta de D. João III, anunciando a vinda do Governador, e chegam a Caramurê, nome primitivo dado pelos tupinambás à nossa cidade, que Fernão Cardim, o “Missionário jesuíta e escritor português, nascido em Viana do Alentejo (1540-1625) autor de uma obra intitulada Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias, publicada na Inglaterra (1881) e dos Tratados da terra e da gente do Brasil, compilados com anotações de João Capistrano Abreu”, chamou de cidade de El-Rei. Cardim, quando provincial da companhia e reitor do Colégio da Bahia (e do Colégio do Rio de Janeiro) teve como discípulo o Padre Antônio Vieira. Não se sabe ao certo a data de sua instalação da cidade. Fincada a Cruz, dois dias depois do desembarque, uma missa foi celebrada pelo padre Manuel da Nóbrega.

No Porto da Barra, enseada de todo o mundo, onde estão localizados as fortalezas de Santa Maria e São Diogo, ponto de encontro, na década de 1960-1970, de artistas e intelectuais célebres, principalmente Caetano Veloso, primus inter pares, existe um monumento, azulejado, comemorativo da chegada do 1º Governador Geral do Brasil.

Manifesta-se Ubaldo Osório, ipsis litteris:

A Tomé de Souza foi dado por D. João III, em Almerim, para governar o Brasil, um Regimento que se encontra entre os Manuscritos recolhidos à Biblioteca de Évora, de onde foi extraída a cópia que D. Pedro, o nosso segundo Imperador, oferecera, em 1856, ao Instituto Histórico Brasileiro. Esse Regimento, que tem 48 Capítulos, é considerado pelo Padre Serafim Leite, documento básico, verdadeira Carta Magna, nossa primeira Constituição”.

No governo Tomé de Souza – que o deixou em 13 de julho de 1553, após uma contenda com o Ouvidor Péro Borges, que o acusou de admitir degredados na Vereação da Câmara da Bahia – “foi dada de sesmaria a D. Violante de Távora, descendente de Martim Afonso de Souza, mãe de D. Antonio de Atayde, Conde de Castanheira, co-irmão por via paterna de Martim Afonso, a Ilha de Itaparica, com as suas águas, matos, e pastos, e logradouros, para que fosse povoada e se fizesse, na mesma Ilha, a criação de todo o gênero de gado”.

Assim, a primeira criação de gado “de todo o gênero”, no Brasil, foi em Itaparica. Digo no Brasil, uma vez que a 1ª Expedição Colonizadora (1530) foi comandada por Martim Afonso de Souza (Governador do Estado Português da Índia, Comendador de Santa Maria de Beja e Mascarenhas - Ordem de Cristo, Capitão-mor do Mar da Índia, Capitão-mor da Carreira da Índia, Capitão-mor de uma Armada ao Brasil (1530-1533) e Capitão-donatário do Brasil (1534-1570), retornando a Portugal em 1533. A ele foi atribuído o primeiro transporte de cana-de-açúcar, escravos e gado para o nosso pedaço de terra. Portanto, se ele chegou à Bahia em 13 de março de 1531 (fundando a Vila de São Vicente, em 1532, a primeira do Brasil), as alimárias chegaram pela primeira vez em terras da Bahia.Tomé de Souza faleceu na Quinta do Ribatejo, Portugal, em 28 de janeiro de 1579.

Duarte da Costa, 2º Governador Geral do Brasil, chegou à Bahia em 13 de julho de 1553, governando tumultuadamente até 1558, cercado de problemas de toda ordem, culminando com a desavença entre o filho do governador, D. Álvaro da Costa, e o primeiro bispo do Brasil D. Pedro Fernandes Sardinha. O Bispo veio a ser devorado, a caminho de Portugal (onde prestaria esclarecimentos a D. João III sobre o seu desentendimento com D. Álvaro da Costa), com toda a sua comitiva, pelos antropofágicos índios Caetés, quando a nau que os conduzia naufragou nas costas do Estado de Alagoas (sudeste), hoje município de Coruripe, ou Cururu-Ipe (Rio dos Seixos).

MEM DE SÁ, 3º Governador Geral do Brasil, nomeado pela regente de Portugal, D. Catarina D`Áustria (princesa espanhola, filha de Felipe I de Castela, arquiduque da Áustria, e da rainha Joana, filha segunda e principal herdeira de Fernandoo Católico, rei de Aragão, e de Isabel, rainha de Castela. D. Catarina era irmã do imperador Carlos V, e rainha de Portugal pelo seu casamento com el-rei D. João III), em 1557, tomou posse em 4 de julho de 1558. Muito bem se houve frente ao governo geral do Brasil, apesar das extremas dificuldades, este que empreendeu batalhas com índios de Ilhéus e Porto Seguro, além de enfrentar a herança terrível deixada por Duarte da Costa. Da mesma forma empreendeu uma luta titânica contra a conjuração dos Tamoios, na Vila de São Vicente, com a ajuda dos missionários jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Na Bahia, erradicou a varíola e a fome, além de suportar os elementos, degredados da pior qualidade, que a metrópole escolhia para substituir os inumados. Jamais desprezou o trabalho empreendido pelos jesuítas com relação aos índios, o que muito lhe valeu. Dizem os historiadores, que o feito de maior monta do 3º governador-geral teria sido a expulsão dos protestantes, liderados por Nicolau Durand de Villegagnon e Coligny, próceres de Calvino, elidindo as suas ambições.

O rei de França apoiou os calvinistas que fundaram a França Antártica. Entretanto, mesmo sem ajuda nenhuma de D. Catarina, até aquele momento, Mem de Sá conseguiu, em 1564, com a chegada do seu sobrinho Estácio de Sá, que como “sua primeira providência fundou um pequeno povoado para abrigar suas tropas, entre os morros Cra de Cão e Pão de Açúcar. Nesse povoado, que deu origem a atual cidade do Rio de Janeiro, os portugueses organizavam suas estratégias contra o inimigo. Em 1567, as tropas portuguesas receberam novos reforços militares e ajuda de índios do cacique Araribóia, tendo expulsado definitivamente os franceses do local. Contudo, Estácio de Sá não conheceu a glória da vitória, pois foi ferido mortalmente por uma flexa envenenada, cerca de um mês antes do combate final”, finalmente, expulsou os franceses da “enseada do Rio de Janeiro”. Em 2 de março de 1572, morreu na Bahia o “pacificador das tribos bravias do Paraguaçu" .

Ainda, Ubaldo Osório: “O benemérito Governador, que sempre teve, pela ilha de Itaparica, o maior desvelo, foi sepultado, na Igreja dos Colégio de Jesus (hoje, a Catedral de Itaparica) em uma campa de pedras de Lisboa, encontrada em 8 de junho de 1915, quando, sob a direção de Monsenhor Flaviano Osório Pimentel.” O professor Mário Vinícius, no seu artigo Algosobre - Os Primeiros Governadores Gerais do Brasil, afirma:

“Com a morte de Mem de Sá, a Metrópole resolveu descentralizar a administração do Brasil, dividindo-o em dois centros: o norte, com sede em Salvador e a cargo de Luiz de Brito Almeida, que governou de 1573 a 1578. O do sul, tendo por sede o Rio de Janeiro, ficou sob a responsabilidade de Antonio Salema, que governou de 1574 a 1578.

Contudo, o rei de Portugal entendeu que os resultados práticos da experiência não haviam sido proveitosos. Destarte, resolveu tornar Salvador o único centro administrativo do governo do Brasil, sendo enviado Lourenço da Veiga para ser o novo governador-geral, que exerceu o cargo até 1581, ano da sua morte. Antes, em 1580, por questões dinásticas, Portugal passou a ser governado pelo Rei de Espanha, Felipe II, tendo se tornado o Brasil parte do reino espanhol. Este domínio durou até 1640, quando D. João V subiu ao trono português, inaugurando a dinastia de Bragança. Todavia, o domínio espanhol no Brasil teve a duração de sessenta anos, de 1580 a 1640. Nesse período, reinaram Felipe II, Felipe III e Felipe IV, sendo que no reinado deste “foi saqueada, pelos holandeses da esquadra de Jacob WilleKens, a “Armação das Baleias” da Ponta da Cruz, em Itaparica.”

Luís D'AVelosa

Referências:

- Ubaldo Osório. A Ilha de Itaparica, História e Tradição, IV edição, 1979.
- Fernão Cardim. www.sobiografias.hpg.ig.com.br- PORTUGAL.
– Dicionário Histórico. Mem de Sá.
www.arqnet.pt/diconario/samem.html
- Mário Vinícius. Primeiro Governadores Gerais do Brasil.
http://www.algosobre.com.br/
- D. Catarina de Áustria.
www.arqnet.pt/dicionário/catarinarainha.html


A ILHA DE ITAPARICA I - OS TUPINAMBÁS E PRIMEIROS PERSONAGENS

"Documentos históricos não são fontes comestíveis para que se lhes rejeite a parte verde, apodrecida ou bichada. Simboliza-se a história com um facho para desobscurecer, e não com a tesoura do recorte, o frasco de benzina e o trapo para lhe alimpar as nódoas da túnica..." ALBERTO RANGEL, Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos, 1943.

Vamos tentar nestes dizeres, despretensiosos e brevíssimos, falar sobre alguns fatos históricos sorvidos na reluzente bateia do historiador da ilha, Coronel UBALDO OSÓRIO (nasceu na Ilha de
Itaparica, na Rua das Beatas, em 16 de maio de 1883, no dia de Santo Ubaldo, morto em Roma no pontificado de Honório XI, filho do Sr. João Osório Pimentel e D. Teolina Gomes Osório Pimentel. Como ele mesmo dissera "cresci numa exaltação íntima pela minha Ilha"), e outros da nossa ilha-mãe onde os portugueses tiveram o primeiro contato com os Tupinambás, que são assim descritos por Gabriel Soares (Tratado Descritivo do Brasil), “o fundador da Etnologia Indígena no Brasil”, nas palavras Roquete Pinto, e, é bom que se diga algo sobre o "modus vivendi" daqueles entes explorados, corrompidos e dizimados, ipsis litteris:

Os Tupinambás, são homens de meã estatura, de cor muito baça, bem feitos e bem dispostos, muito alegres de rosto, e bem assombrados; todos tem bons dentes, alvos, miúdos, sem lhe nunca apodrecerem, - tem as pernas bem feitas, os pés pequenos; trazem o cabelo da cabeça sempre aparado, em todas as outras partes do corpo os não consentem e os arrancam como lhes nascem; são homens de grandes fôrças e de muito trabalho; são muito belicosos, em sua maneira esforçados, e para muitos ainda que atraiçoados, são muito amigos de novidades e demasiadamente luxuriosos, grandes caçadores e pescadores e amigos de lavouras. Quando estas índias entram em dores de parir, não buscam parteiras, não se resguardam do ar, nem fazem outras cerimônias, parem pelos campos e em qualquer outra parte como uma alimária; e em acabando de parir, vão ao rio ou a fonte onde se lavam e as crianças que pariram; e vêm-se para casa, onde o marido se deita logo na rêde onde está muito coberto até que seca o umbigo da criança.”

Portanto, não eram preguiçosos como querem os seus imoladores, eram belos, amigos e, como aprendemos nos primeiros anos, a sabedoria natural era uma característica notável. Mas, precisavam “desaparecer” para darem lugar ao gado, às lavouras e aos engenhos dos dominadores. Blás Garay, nos conta que os índios eram “frios”, daí as índias preferirem os colonos. Os padres jesuítas, temerosos de uma despovoação, determinaram dia e hora para as obrigações conjugais, que deveriam ser exercitadas mensalmente, mas que depois foram mais intensificadas, mediante sermões e outras ameaças infernais. Mas, de nada adiantou. Vieram ao mundo os mamelucos e estão aí até os nossos dias, compondo a nossa fantástica diversidade étnica. Existia, também, um outro costume interessante: as índias se identificavam como virgens, trazendo abaixo do joelho uma faixa vermelha que chamavam de tupacurá.

Naquele ambiente, nasceu Catarina Paraguaçu (rio grande), filha do morubixaba Taparica, que conviveu por muitos anos com o fidalgo da Casa Real Diogo Álvares, o Caramuru, “o náufrago da Mariquiquiig” (Mariquita), localidade onde o mar bate forte, no bairro do Rio Vermelho.

O naufrágio deve ter ocorrido em 1510, uma vez que o historiador fixa a data da morte de Diogo Álvares, no dia 5 de outubro de 1557 e afirma que ele viveu 47 anos entre os tupinambás, com quem teve 4 filhas: Ana, Genebra, Apolônia e Grácia. Seus filhos ilegítimos, pelo menos o que a história registrou: Isabel Álvares, Catarina Álvares, Diogo Álvares, Gaspar Álvares, Marcos Álvares, Jorge Álvares, Manoel Álvares, Felipa, Madalena Álvares, Elena Álvares e Beatriz Álvares.

Portanto, o “árbitro de todas as contendas que se suscitavam entre os índios visinhos”, conquistando o respeito dos chefes indígenas, era um verdadeiro patriarca. Todos os caciques desejavam que Caramuru casasse com suas filhas, mas o nativo de Viana do Minho preferiu a filha do mais respeitado, Taparica - notícia de Inácio Accioli nas Memórias Históricas e Políticas da Bahia. UBALDO OSÓRIO, cita Wandfgang Hoffman que diz: “Viveu com várias amantes ameríndias e teve muitos filhos. Mais de cem.”

Catarina Paraguaçu, nem os seus filhos, conheciam o idioma do conquistador, daí o Padre Luiz da Grã (nasceu em Lisbôa, estudou direito em Coimbra e entrou na Companhia de Jesus em 1543. Chegou ao Brasil em 1553 na companhia do 2º Governador Geral do Brasil, D. Duarte da Costa, chefiando a terceira missão jesuítica ao lado de José de Anchiêta e outros. Faleceu em 16 de novembro de 1609, no Colégio dos Jesuítas, em Pernambuco, o Fundador da Redução de Vera Cruz de Itaparica) haver traduzido da língua brasílica para o português (Deus é testemunha de que a tradução foi fidedigna...), a doação feita por Catarina (foi batizada Catarina do Brasil, em Saint-Malô, na França, no dia 28 de julho de 1528, acompanhada por Caramuru, levados por Jacques Cartier, um contrabandista de pau brasil, "sendo padrinho o nobre senhor Guiyn Jamyn, reitor de Sain-Jagu, e madrinhas Catarina de Granges e Francisca Le Gobien, filha do procurador de Sain-Malô, tendo servido como oficiante, monsenhor Lancelot Ruffier, Vigário Geral, no dia e ano supracitados. Padre Troblet." Esta informação é de Olga Obry, na sua obra Catarina do Brasil - das terras da Graça ao Mosteiro de São Bento, em 16 de julho de 1586, escritura transcrita no Livro Velho do Tombo do referido monastério, conforme citação de Ubaldo Osório.

A Guaimin-Pará, Catarina Paraguaçu, “a Eva do Paraíso Tropical”, como bem disse Pedro Calmon, está sepultada na Igreja da Graça, eternizada em pintura na sua nave.

Taparica, o morubixaba de diversas nações – não só de Itaparica – veio a falecer, naturalmente, antes de Paraguaçu, acontecimento de suma importância, sendo o seu sepultamento tecido num ritual para um grande chefe, conforme trechos da manifestação de Viriato Correia nas suas “Belas Histórias da História do Brasil”, ipsis verbis: “Logo que o valente guerreiro expirou saíram mensageiros a avisar os povos amigos. A Aldeia inteira, ou melhor, as aldeias tupinambás, desde a véspera, ali estavam juntas da óca do moribundo, à espera que ele fechasse os olhos para sempre. (...) Lavou-se o cadáver. Depois lambuzaram com mel de abelha da cabeça aos pés e o cobriram com pasta de algodão e com penas multicores de pássaros. Puzeram, em seguida, de cócoras, dentro de um grande pote, a que eles chamam de IGAÇABA. É o caixão de defunto dos indígenas. Colocou-se a igaçaba na ÓCARA, ou melhor, no terreiro da aldeia [“Praça das cerimônias”], e, junto dela expuseram as armas que o finado guerreiro se servia, nos combates, e também os objetos que ele mais usava e amava, na vida. Chegaram os chefes das outras tabas, maiorais de outras tribos, enfeitados como para uma festa. A família do morto, vestida ricamente, veio colocar-se perto do cadáver. É a hora do enterro. Os caciques, e os mais afamados homens de guerra das aldeias visinhas, entram na ÓCARA e param diante do defunto. E começa uma discurseira interminável. Cada um deles, em voz alta, põe-se a elogiar a coragem e o valor que tivera o pai de Paraguaçu. E enquanto vão falando, todas as pessoas presentes choram num berreiro ensurdecedor. Forma-se o cortejo a caminho da TIBICOÁRA ou cemitério. Na frente vai o pote, com o corpo. Atrás, o povo entoando cantos tristes. A cova está aberta. Dentro dela colocam a IGAÇABA. E colocam também as armas que o morubixaba usou na terra e muita caça, farinha, aipim, mel, frutas para que o morto se alimente no outro mundo. Cobre-se, depois, tudo isso com terra. Durante cerca de um mês, noite e dia, a família chorou-o junto a sepultura. Paraguaçu, cortou os cabelos em sinal de luto”.

Enterro de Faraó, mas não se fala em ouro, prata ou pedras preciosas levadas ao túmulo. Estamos no século XVI.


Luís D'Avelosa


Referências:

Osório.Ubaldo. A Iha de Itaparica – História e Tradição, IV edição, 1979.
Revista do Instituto Genealógico da Bahia, Edição Comemorativa, 60 anos, Nº 22, 2005.




REMINISCÊNCIAS


Chegamos à cidade da ilha de Itaparica, situada no sudoeste da Baía de Todos os Santos, no mês de abril de 1954, a bordo do navio Mascote (diz o povo que o Mascote era um iate que pertencia ao ator americano Gary Cooper). Meu pai, engenheiro agrônomo, foi nomeado para administrar a Fazenda Mocambo, gleba do Estado, localizada na parte oriental da ilha, onde se cultivava o coco e o dendê.


Anoitecia. Relampejava, trovejava e chovia torrencialmente. Mar encapelado. A ventania envolta num frio incomodativo, revelava alto percentual de umidade. Essa a primeira visão da ilha que nos pareceu uma pintura impressionista.

A cidade estava na escuridão, melancólica, despovoada. Desembarcados, ainda ventando e choviscando, tomamos o caminho da Rua Fonseca Lima, onde residimos por seis anos (1954-1960), e veraneamos até os dias de hoje. Era um casarão construído no início do século XX (incendiou-se após a construção, e logo reconstruído), com nove quartos e duas grandes salas. Ao fundo limitava-se com o mar. A casa era antiga, telha-vã sustentada por oito toras de pau-ferro. Na falta de luz elétrica, acendemos os candeeiros. Muita conversa, mas extenuados, fomos dormir vencidos pelo cansaço que nos envolve nessas circunstâncias. Os lençóis estavam muito frios e adormecemos num silêncio de profundezas.

Aos meus olhos, tudo em volta era fantástico. Tudo iluminava o dia seguinte. Os passarinhos cantavam nas duas mangueiras enraizadas no pátio da residência dos Gordilho, defronte de nossa casa. Percebi que no dia anterior, na escuridão mal-assombrada, seria impossível vislumbrar o quanto era belo a Avenida D. Jerônimo Tomé da Silva, o "Boulevard", com as suas casas de arquitetura eclética. Nos seus duzentos metros de comprimento, calçados de paralelepípedos desgastados, era sombreado por frondosas árvores de fícus e castanheiros, até nos confrontarmos com o Jardim do Forte, ao lado da bela Fortaleza de São Lourenço (o Forte). Quando esquecíamos das sandálias, os pés "pegavam fogo".

O canto do bem-te-vi quebrava o silêncio. Tudo parecia de uma calmaria cabralina, rompida na maioria dos dias pelas tormentosas chuvas de abril, que encharcavam a cidade. Do Jardim do Forte, vislumbrávamos a cidade do Salvador, envolta em cerração. A maré vazia, “coroa” a descoberto, deixava exalar o estimulante cheiro de sal iodado. Como dizia um primo nosso, que por lá esteve à procura de cura para os seus males, inspirando fundo:

- Ah! O ar iodado...

O primeiro mês foi de inúmeras providências, incluindo a decisão materna que me obrigou a estudar com as freiras do Seminário São Vicente de Paula (inaugurado por D. Álvaro Augusto Cardeal da Silva, em 1941), localizado numa grande chácara que pertencera ao Conselheiro Luiz Álvares, uma vez que as matrículas regulares estavam encerradas. Assim, começariam as minhas incursões pela ilha adentro, convivendo com a cultura nativa.


A dona do Brasil, a índia tupinambá Catarina Paraguaçu, filha dileta do morubixaba Taparica, foi batizada Catarina do Brasil (Saint-Malô, França, no ano de 1525), herdeira das terras tupinambás, mulher do fidalgo da Casa Real Diogo Álvares Corrêa, O Caramuru, náufrago da Mariquita (1510), enseada rochosa onde o mar quebra forte, localizada no bairro do Rio Vermelho. Ninguém se preocupou em fixar para a História, a data de nascimento e morte de Catarina, sequer onde foi sepultada, o que poderia ter sido em alguma igreja, considerando o costume da época, particularmente a de Nossa Senhora da Graça, ou, na própria ilha, sob os seus domínios. Parece-nos que ela teve muito pouca influência naqueles dias no processo de aculturação, a não ser os filhos que tivera com Caramuru.

Mas, como nem só do passado vive o homem, a minha primeira experiência foi com a pescaria. Logo, em companhia de meu pai, fui à loja do galego Joaquim, pessoa inesquecível pela bondade e retidão, onde havia todos os apetrechos de pesca, inclusive o jereré que possibilitou saborearmos as moquecas de siri. Certamente, um dia de “grandes negócios”.

Logo aprendi que a pescaria, além de uma atividade prazerosa, era uma arte. Os amadores e profissionais acorriam para a velha ponte de madeira ou arriscavam o mergulho sob a carcaça de um navio grego (explodiu com uma carga de carvão de pedra, nos anos 1930), santuário de piscosidade. Que o diga o colega Figueredo, veranista, pescador emérito, mergulhador das profundezas silenciosas. Enfim, entre nós a pescaria era mesmo uma atividade gregária, portanto, não necessariamente um esporte dos que gostam de ficar a sós. Quase diariamente, lá estava embaraçando-me nas linhas, chumbadas e anzóis, construindo amizades para sempre.

Lembro-me, perfeitamente, do pescador Sr. Tote e seus dois filhos, Ademir e Eduardo, homens de bem. Moravam aos fundos do solar João das Botas. Alugávamos o barco, vela de pena, e bordejávamos nas águas orientais, aos caprichos do forte vento Nordeste, apoitando no Mutá, onde, após abraçarmos os amigos, principalmente o "Jacaré" (alcunha pela sua intimidade com a fubuia tradicional), nossa companhia para "o que desse e viesse".


Naquele lugarejo paradisíaco, terra de artistas, cantores e compositores, saboreávamos a "gasosa de limão" ou o "guaraná", ambos os resfrigerantes fabricados pela Fratteli Vita, famosa fábrica baiana dos anos 1950-1960, hoje nas prateleiras da extinção. Na mesma ocasião, visitávamos Cações, outro lugarejo encantador, próximo a Mutá, onde a quituteira Tereza, mulata belíssima, inzoneira, e que hoje seria uma pedofilazinha, pois, adorava "bulir" com a meninada, preparava a moqueca de caçonete, com leite de ouricuri, azeite de flor de dendê, muitos temperos e o saboroso molho lambão. Para rebater, uma cerveja bem gelada, às vezes sorvida em caneco de alumínio, ato final de canonização daquelas tardes inesquecíveis. Barriga cheia, o meu velho começava a relembrar as peixadas e caranguejadas de Atalaia, a sua ilha de Canavieiras. Sol se pondo, voltávamos a Itaparica.

Depois dos magistrais ensinamentos da professora Belazinha, na sua casa do Campo Formoso, saíamos ansiosos para chegar em casa, trocar a farda pelo caução, e rumávamos para o campinho das Quintas. O "baba" era indispensável e inadiável. Todos se reuniam sentados na graminha, escalavam o time e o jogo começava. Os gritos de sempre, as acusações dirigidas ao juiz, xingamentos, os góis sempre contestados pelos adversários, e o famoso "pare a bola", quando se aproximava uma pessoa mais velha, ou até mesmo uma bela jovem.

Terminado o baba, todos suados e cansados, íamos para a "escadinha" das Quintas e o banho de mar acontecia, quando discutíamos as ocorrências futebolísticas. A água salgada sempre morninha àquelas horas da tarde, na boca da noite, era campo aberto para a investida do friozinho na saída, incomodativo, quando deixávamos acertado o encontro da noite, em alguma festa, algum bar ou em qualquer outro lugar. Em casa, nos esperava o pote ou a moringa - água gelada era proibida - com água mineral. Não raras vezes, a mucosa bucal ficava irritada com a presença do sal iodado.

Os filhos da ilha, meus companheiros de estripulias, não os esqueço: Gilberto, filho do sargento do Forte; Nenéu, Budião, Antônio França (advogado), filho do Sr. Dadi, outro cidadão inesquecível; Nadinho de Colô, Sete Gatos (ou Gato Sete), Davino, Jacob; Roque, filho do Sr. Antônio, comerciante de prestígio e filantropo; os irmãos Borba Fróes: Alberto, Edgard e Antônio. Jorge Borba Fróes, o caçula, meu colega do curso primário e, anos depois, de faculdade. Está morto. Era genial (sabia mais do que estudava), um bom e belo homem, agora na eternidade para onde todos caminhamos. Walter Freitas Veiga, este o mais póximo de todos, e tantos outros caríssimos companheiros de infância e adolescência.

Êpa! Os camboeiros de setembro!... Terminaram as chuvas torrenciais, apesar da história lembrar que no mês de novembro, visitando a ilha, D. Pedro II enfrentou um aguaceiro de fazer inveja às florestas tropicais. Sua Majestade, retornou a Salvador, o mais rápido que resolveu.

Estamos terminando o inverno. O famoso e “caliente” verão se aproxima, trazendo veranistas e todo um ânimo de divertimento e relaxamento da lida metropolitana. Para mim, era um sonho realizado, tudo acontecendo... O veraneio era uma festa. O sol brilhava, água morna do mar, as portas se abriam, o comércio ressurgia, as missas se multiplicavam, o cassino do Grande Hotel reabria, os xodós aconteciam no frenesi romântico dos “anos dourados”.



Certo dia, apareceu na ilha um cidadão sírio-libanês, Luís, que instalou um barzinho nos fundos da Pensão Anita, antiga Casa dos Contratos, Praça da Piedade, onde se hospedou D. João VI, Pedro I e Pedro II, hoje sede da Secretaria de Turismo de Itaparica, que muito tem se ocupado em propagar a beleza insular. No Sírio, como chamávamos o boteco, políticos e banqueiros, empresários, profissionais liberais, estudantes (principalmente aqueles que acabavam de “passar” no exame vestibular) e todo o povo, comemoravam a vida com a saborosa cerveja, frango assado, frutos do mar, etc. Essa investida estendia-se até altas horas da madrugada, e na alvorada lá estávamos nos folguedos das libações.
Depois de muito lero-lero, íamos para a Fonte da Bica, que nasce no Alto de Santo Antônio dos Navegantes, onde sorvíamos a água mineral digestiva, curativa, milagrosa, famosa em todo o mundo. Desjejum feito, após um banho doce, voltávamos à Praia do Forte, onde tudo recomeçava. Mulheres não participavam dos “banquetes”... Eram outros tempos. As nossas namoradinhas eram “moças de família”. As “damas da noite” não apareciam... Eram o pecado encarnado.
Dia 7 de Janeiro, comemorativo da festa de Independência de Itaparica (1823). O “Carro do Caboclo” arrastava a história. Uma festa onde todos se irmanavam numa exaltação aos feitos heróicos que nos libertou do jugo português. O auge da celebração acontece no Campo Formoso, jardim público encantador, rodeado por um cinema, cadeia, um posto de puericultura e o Seminário São Francisco de Paula, hoje Centro de Treinamento de Líderes, e pelas casas dos coronéis da Guarda Nacional (meu bisavô materno, João Antônio, era um deles, assim como meu avô materno era Major).
Naquele ambiente, veranistas e o povo nativo se uniam com o propósito de comemorar os feitos heróicos dos itaparicanos. Ali, o sorveteiro, seu Moreira, personagem de livro, mercadejava a guloseima caseira, apreciada por todos. Aliás, o famoso sorveteiro, também vendia nos conveses dos navios da linha Salvador-Itaparica, e vice-versa.
Durante os festejos, aproveitávamos para marcar o próximo encontro na Praça da Quitanda, com projeto de mudança para Praça João Ubaldo Ribeiro, local onde se reúnem todos os que estão pisando na terra dos desejos. Depois da caranguejada, íamos jogar pôquer aberto no Hotel Icaraí, por benevolência do seu proprietário, o inglês Samuel, israelita, um humanista. Aí, era outra festa! Como o bar do Sírio ficava defronte do hotel, sempre o visitávamos depois das partidas, lá bebericando até a atracação do navio ao sol poente.
Havia na cidade um cinema que nada ficava a dever ao tema do festejado “Cinema Paradizo”, mas poucos freqüentavam, muito mais o povo da terra. Era desconfortável e com tecnologia ultrapassada, de modo que o filme partia-se a todo o momento, terminando a sessão em tempo muito além do esperado.
Impossível esquecer os baquistas interessantes e outros de hábitos excêntricos, que impressionavam os circunstantes: Baiacu, Piroca, Americano, Maria de Lázaro, Maria Patejó e Ioiô C.V.
Baiacu, apareceu em Itaparica nos idos de 1955/1956. Tinha mania pelo militarismo, carregando o seu inafastável cassetete de madeira. Quando nos via fazia continência, ao que respondíamos com o mesmo cumprimento. Dessa forma, trabalhava na prefeitura e sofria do mal maior que desfigura a autoridade: o “abuso de poder”. Certa manhã, defronte do Solar João das Botas, na Praça da Quitanda, Piroca estava “discursando”, ensandecido pelo etanol, proferindo impropérios ao seu “primo rico”, pecuarista e açougueiro Caetano, que, alheio aos insultos costumeiros cuidava dos seus negócios. Eram primos carnais. Aliás, em Itaparica todos são parentes, fenômeno das cidades antigas e que pouco se desenvolvem economicamente.
Então, “Baiacu”, resolveu aplicar uma cacetada em Piroca, abrindo-lhe o coro cabeludo. Afinal de contas ele era o “mantenedor” da ordem pública. Sangue no chão, gritos por todos os lados, uma verdadeira algazarra. O povo não admitiu o gesto do miliciano alienígena, aprazando o seu banimento para o dia seguinte.
Era uma indignação generalizada. Um estranho querendo mandar, “enquadrar” e espancar os nativos. Insuportável, jamais! Os nativos não aceitavam o ato tresloucado. No dia seguinte, sete horas, lá estava no convés do Mascote, o estrangeiro que se tornara "persona non grata" dos ilhéus itaparicanos.
Americano, era filho de Nazaré das Farinhas. Nesta aprazível cidade viveu durante alguns anos como alfaiate. A história oral registra que sofreu uma desilusão amorosa e afogou-se na cachaça. Perambulava pelas ruas da cidade, passos ligeiros, irregulares, balançando os braços desordenadamente. Dormia na varanda de uma casa no Campo Formoso. Não criava caso, mas não falava com ninguém, a não ser ser “comendo água", quando dizia: “Apoiado!”. Só isso, só essa asserção.
Maria de Lázaro (foto), que de tão magra parecia sempre de perfil, como diria Vargas Llosa referindo-se a Antônio Conselheiro, era uma anciã afro-descendente que diziam enlouquecida por amor perdido. Seu ex-marido, Lázaro, era um mestre de obras conceituado, que a morte surpreendeu, deixando Maria na viuvez e penúria. Não fosse o seu sobrinho, Astério, pescador e vendedor de peixes, a franzina viúva morreria antes dos seus 106 anos de existência terrena. Maria tinha um hábito do qual ela nunca abdicou: acordava, tomava o seu cafezinho preto, caminhava alguns passos até a igrejinha de Santo Antonio dos Navegantes, orava, e logo estava na Fonte da Bica enchendo a sua garrafa d´água. “Água santa”, como ela propalava convicta. Sempre estava derredor de nossa família, uma vez que foi babá de minha irmã Lêda. Dizia minha mãe que ela dormia catando camarões. Era a repulsa à obrigatoriedade laboral, uma das qualidades dos nativos. Maria era divertida, cantava canções antiqüíssimas e, nos intervalos, sorvia um gole da água santa. Lembro-me do início de uma dessas canções: “Que noite tão bela que belo luar, não vejo a donzela a quem desejo amar...” Era católica e ignorava as batidas dos tambores que ecoavam dos terreiros de candomblé do Alto de Santo Antônio dos Navegantes e de Amoreiras. Dizia com orgulho e solene circunspecção: “Não gosto de candomblés. Meu Deus é Santo Antônio.” Vestia-se ainda com modelos do século XIX, vestidos que chegavam quase a cobrir-lhe os pés, sempre escuros com florzinhas brancas e sandálias de couro cru, bem gastas pelo uso.
Piroca, cidadão de origem familiar de tradição, diariamente, exceto nos finais de semana, postava-se “na Praça da Quitanda, e do seu ângulo “desmoralizava” e desafiava Caetano, sem ligar para o conjunto de facas do açougue, machadinhas e furadores, xingando até a sua própria mãe, e o chamava para a luta corporal a todo tempo. Era um discurso de horas, quase ininteligível. Caetano era o seu único alvo, mas não perdia o aplomb.

Maria Patejó, estava sempre sobre si. A sua coluna vertebral era absolutamente deformada, arqueada. Morava e zelava por uma casa antiga, talvez do século XIX, na avenida que nos leva à Fonte da Bica. Nós, meninos terríveis, brincávamos com ela o que a enfurecia, batendo com o ancinho no portão de ferro, sempre fechado a cadeado, proferindo palavrões. Xingava-nos, esbravejando. Nada se sabia da sua vida, mas daquela casa ela não saía para lugar algum. Viveu mais de um século.
Sinhozinho C.V. ou Ioiô C.V., somente saía à noite. Traje passeio completo de casimira escura, camisa branca, gravata de cor cinza e sapatos pretos de oleado. Era um dos Veiga, família tradicional da ilha, outrora detentora de poder político e muitas riquezas. O cabelo negro, pintado, repartido ao meio e penteado ao gosto das brilhantinas, contrastava com a lividez do rosto e das mãos. Vivia sob a sombra de um passado remoto, daqueles dias de fausto e mando, tão a gosto das burguesias emergentes. Assim, ele andava por toda a cidade, abraçado pela noite sob o reluzir da estrelas, ou nas varandas, esperando a chuva passar.

Essa era a nossa ilha encantada. *

Luís D’Avelosa





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