CONTINUAÇÃO DO SINDÉRESE

Quinta-feira, 8 de Novembro de 2007

ANENCEFALIA - FIM DA LINHA



"Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia, frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica." - Professor Luís Roberto Barroso.

Após o "decisum" do eminente ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Marco Aurélio de Mello (27.04.2005 – 7 votos a quatro), concedendo à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS medida liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – APDF, nº 54, autorizando a antecipação terapêutica de parto nos casos de anencefalia, o que levou a sociedade a polemizar o assunto.
Naquela oportunidade, acompanharam o voto do ministro Marco Aurélio (1), os eminentes ministros Celso de Mello (2), Sepúlveda Pertence (3), Nelson Jobim (4), Carlos Ayres Britto (5), Joaquim Barbosa (6) e Gilmar Mendes (7). Votaram contra a admissibilidade da ADPF, os eminentes ministros Cezar Peluso (1), Eros Grau (2), Carlos Velloso (3) e Ellen Gracie (4). Ulteriormente, a liminar, em sessão plenária, foi cassada por maioria de votos, auscultada e acatada a manifestação do eminente ministro Eros Grau.
A anencefalia, assim é definida pelos médicos:

“Uma malformação congênita que se caracteriza geralmente pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida”.

Entretanto, o assunto está aberto a discussões. "O termo anencefalia é impróprio, uma vez que não há ausência de todo o encéfalo, como o termo sugere. O encéfalo compreende várias partes, sendo as principais o telencéfalo (cérebro ou hemisférios cerebrais), o diencéfalo (do qual fazem parte o tálamo e o hipotálamo), tronco encefálico (mesencéfalo, ponte e medula oblonga). O cérebro é a parte anterior e superior da massa encefálica e ocupa a maior parte da cavidade craniana”.

Pergunta-se, ainda:- Havendo morte encefálica a criança não estaria morta?


“É importante essa pergunta, pois no encéfalo não se caracteriza a morte encefálica. Inadvertidamente querem igualar a falta de hemisférios cerebrais com a morte encefálica. Os critérios para diagnosticar a morte encefálica não são aplicáveis cientificamente a crianças menores de dois anos, muito menos a crianças intraútero, quando nem se pode fazer os testes necessários ao diagnóstico. Uma vez nascida a criança anencefálica, responde a estímulos auditivos, vestibulares e dolorosos e apresenta quase todos os reflexos primitivos dos recém-nascidos, conforme informam os Professores Aron Diament e Saul Cypel da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em “Neorologia Infantil”, 3ª edição, Editora Atheneu. A criança anencefálica é um ser humano vivo, com toda a sua dignidade que lhe é conferida pela sua natureza humana”.

- Qual a avaliação que o senhor faz da decisão do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, de autorizar o aborto em caso de anencefalia fetal?

“Decisão apressada, tendenciosa e, segundo muitos juristas, é inconstitucional porquanto macula o artigo 5º da lei suprema [corresponde à garantia da proibição de pena de morte], que considera inviolável o direito à vida. Além disso, viola o artigo 4º da Convenção Americana de Direitos e 1969, também denominada de Pacto de San José da Costa Rica, no inciso 1 do Art. 4:

“Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”, mas admite a pena de morte "oficial", aceitação inserta no inciso 2, nos Estados que não a aboliram, v.g., EEUU, Cuba, China e alguns países árabes], tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção, ou seja, uma expectativa de vida em desenvolvimento pleno, e não, uma vida que sabemos quase pronta, que não vinga à completude, tornando a morte "inevitável e certa".

Do ponto de vista ético foi uma aberração conceder aos médicos uma função de carrasco para matar seres humanos inocentes [uma absurdidade, “permissa maxima venia”, a ilação do entrevistado], função para a qual nós, os médicos, não fomos formados" [sic] “Entrevista com Dernival da Silva Brandão, Especialista em Ginecologia e Obstetrícia e Membro Emérito da Academia Fluminense de Medicina, que esclarece as questões referentes à gestação de um feto com anencefalia e o porquê de não se permitir o aborto neste caso. O tema ganhou destaque na sociedade brasileira, após o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, decidir pelo aborto em caso de anencefalia". A entrevista completa, encontra-se no site ZENIT.org.

A Dra. Gizele Thame, biomédica, conforme artigo intitulado "Defeitos do tubo neural podem ser causados pela deficiência de folato", nos ensina que “a anencefalia [ausência total ou parcial do cérebro] é doença grave que geralmente causa a morte da criança e poderia ser evitada (como outras patologias) com simples medidas de suplementação de folato (ácido fólico)”. Ela insiste na importância da conscientização da mulher em idade reprodutiva e, principalmente, da classe médica responsável pela recomendação da suplementação antes da gravidez. “A porcentagem de médicos que tem consciência dessa necessidade é muito pequena. Nos centros de indução de ovulação a recomendação seria fundamental, mas nem sempre existe. E como a anemia por falta de ferro é a mais freqüente, estuda-se menos o folato”.

Diz o articulista que a Dra. Gisele Thame resalta a importância de medidas preventivas e campanhas nacionais de esclarecimento... “A seu ver, se o feto nasceu sem cérebro, já nasceu com “morte cerebral”. Dra. Gisele já iniciou sua pesquisa de doutorado dando continuidade a este estudo. Para tanto, solicita aos obstetras que encaminhem gestantes com essa diagnóstico para realização de exames de sangue gratuitos”.

Conforme, felizmente, enfatizou a Dra. Gisele Thame, a prática de medidas necessárias que poderiam evitar os defeitos no tubo neural (e outras patologias), "in casu", com a suplementação de folato (ácido fólico) às gestantes, indicando, inclusive, o "modus faciendi" de outras atitudes que debelariam o mal indesejado. O que mais nos impressionou da leitura do texto da biomédica, entre outras observações, foi o fato de haver reconhecido que “A porcentagem de médicos que tem consciência dessa necessidade é muito pequena...” De outro modo, portanto, incompossível o aborto. Daqui para frente, no evolver da vida e do Direito, nada mais nos restará senão raspar o fundo da cuia e oferecer à sociedade a trilheira da melhor conduta que satisfaça a todos os envolvidos nessa trama do cotidiano.

A Conselheira do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, no Parecer Técnico protocolizado sob nº 08001.002110/2005-21, datado de 13 de fevereiro de 2006, opina, com espeque em manifestação médica, "ipsis litteris":

"A medicina afirma sem margem de erro: não há possibilidade de vida fora do útero e por isso o feto que padece de anencefalia é considerado natimorto. Mais de 65% dos casos resultam em morte ainda dentro do útero. Ao lado desta constatação, lembrem-se que o nosso sistema jurídico abriga a lei dos transplantes (lei federal 9.434/97) que considera cessada a vida quando se dá a morte encefálica - de acordo com a referida legislação, a retirada de tecidos ou partes do corpo humano para transplante deve ser precedida pela morte encefálica. A resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.752, de 8 de setembro de 2004, autoriza o transplante de órgãos do anencéfalo após o seu nascimento.

A mesma resolução considera os anencéfalos "natimortos cerebrais" e diz que possuem "inviabilidade vital por ausência de cérebro". Assim, considerando o tratamento que o sistema jurídico pátrio confere a estas questões, o projeto de lei em análise está em perfeita sintonia com os valores vigentes em nosso meio; não há nele nenhuma inconsistência ou paradoxo. Vejamos:

a) se o nosso sistema jurídico punisse a mulher cuja gravidez resultou de estupro e decide abortar;
b) se obrigasse a mulher a sacrificar sua vida em favor da vida em gestação;c) se obrigasse os médicos a manter os batimentos cardíacos depois de constatada a morte cerebral;

c) se trouxesse valores impassíveis de qualquer espécie de relativização, aí então, e só assim, a proposta em análise traria uma tremenda novidade que estaria a exigir profundo debate pois sua adoção configuraria uma mudança de padrão ético vigente em nossa sociedade.

O fato é que, quando da elaboração do Código Penal, inexistia tecnologia apta a fornecer diagnósticos precisos como os atualmente disponíveis. Fosse assim, é provável que o legislador de 1940 houvesse incluido no artgo 128 a proposta que agora, passados 66 anos, é capaz de causar tanta polêmica.
"Pois bem. No dia 13/2/2006, reunido o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP, este órgão aprovou por unanimidade, no uso de suas atribuições, parecer favorável ao Projeto de Lei 4.403, da deputada Jandira Feghali, que insere o inciso III no Art. 128 do CP, “ipsis litteris”:

"III – Houver evidência clínica embasada por técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta grave e incurável anomalia que implique na impossibilidade de vida extra-uterina”.
Entretanto, somos sensíveis à emenda do deputado Rafael Guerra, uma vez que o nobre parlamentar alveja a anencefalia, ponto nevrálgico de toda a discussão derredor de tema tão polêmico por razões legais, éticas, morais, religiosas, etc. Outros casos, a meu sentir, deverão ser apreciados de “per se”, rechaçando generalizações, essas abstrações sempre eivadas de temeridade. Sobretudo, vale a boa intenção da nobre deputada Jandira Feghali e do deputado Rafael Guerra, o emendador.

O parecer da CNPCP, aprovando o Projeto de Lei 4.403, propiciando o aborto de anencéfalos, será encaminhado ao Congresso Nacional. Enquanto, isso, a ADPF está em curso no Supremo Tribunal Federal – STF. Congratulamo-nos com o STF, CNPCP, que manifestou-se escorreitamente, através de Parecer Técnico, Protocolo 08001.002110/2005-21, Procedência: Supar - Art Política, sendo da lavra da eminente Conselheira Ana Sofia Schmidt de Oliveira, que propôs, também, "in fine", a "... alteração da redação para estender a hipótese à gestante incapaz - circunstância em que a autorização será fornecida por seu representante legal e para esclarecer o tipo de diagnótico que se espera", "ipsis litteris":

III - "quando há evidência clínica embasada em técnica de diagnóstico complementar ao da gravidez de que o nascituro apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal."

Parabenizamos, notadamente, os senhores deputados que teceram o Projeto descriminante (abolitio criminis) , Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e o Professor Luís Roberto Barroso, ilustre advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS, o emérito vencedor (temos a certeza) dessa causa que inspira controvérsia, “a latere” da sociedade brasileira, sensível e sedenta pelo aperfeiçoamento do nosso ordenamento jurídico, considerando o evolver do mundo da vida.

Luiz de Carvalho Ramos

Referência: Site Consultor Jurídico, 15.02.2006, disponível em http://www.conjur.com.br/As demais fontes constam do contexto.

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AS DUAS PULSÕES E A ETERNIDADE



“Era um belo rapaz, corpo esbelto e tez pálida, grandes olhos vivos, negra e basta cabeleira, voz possante, dons e maneiras que impressionavam a multidão, impondo-se à admiração dos homens e arrebatando paixões às mulheres. Ocorrem então os primeiros romances, que nos faz sentir em seus versos, os mais belos poemas líricos do Brasil”.“Sobre sua época de menino escreve Carneiro Ribeiro, seu Mestre, no Ginásio Baiano:
“Muito verde em idade, muito afável, de índole benévola, fisionomia por extremo simpática, olhos quase à flor do rosto, fronte alta e espaçosa; estimadíssimo no colégio por diretor, professores e condiscípulos, alguns dos quais lhe chamavam Cecéu, nome que lhe dera a família”, no depoimento de Xavier Marques. Praticava o bem com o coração aberto, com prazer... Castro Alves fazia o bem com participação do sentimento e do amor.
Jorge Amado escreveu: “Castro Alves foi um artista que encarou a vida de frente, que não teve medo de se envolver nos problemas dos homens”. É que, segundo o romancista: “Na Bahia aprendera com seu tio o valor do povo. Estava apto para o Recife, para o ambiente da faculdade, para lutas e também para o amor. Recife há de lhe dar a sua amada, aquela que encherá de alegria e de desgraça a sua vida tão breve e tão imensa. A índole sociável de Castro Alves era muito desenvolvida e seu encanto pessoal sensibilizava os corações mais frios. Sua bela aparência física impressionava fortemente. Expansivo, encontrou um escoadouro criativo por meio da sua poesia comunicativa e aliciante. Era elegante e se trajava com apuro, sendo sua maior tentação o prazer, incluindo o prazer da visão, do gosto, do tato, das emoções”.
Antônio Frederico de Castro Alves, mais conhecido pelo nome de Castro Alves, ou Cecéu, na intimidade, deixou este mundo no dia 6 de julho de 1871, às 15h30, 24 anos de idade (E eu morro, ó Deus! Na aurora da existência, quando a sede e o desejo em nós palpita – Mocidade e Morte), em seu quarto, cômodo lacrado do Solar do Sodré, construído no séc. XVIII, Rua do Sodré, nº 43, Salvador, residência de sua família que ali chegou em 1862, e, mais tarde, sede do Ginásio Ipiranga, onde estudou Jorge Amado e outras celebridades. A rua íngreme nos conduz à Cidade Baixa, com acesso pela Ladeira de Santa TerezaMuseu de Arte Sacra.
Quando expirou estava ao colo de sua amada irmã, Adelaide Guimarães. Passaram-se 136 anos, e, hoje, estamos aqui a dizer algumas palavras que rememoram momentos da vida e obra do poeta. Uma coisa podemos dizer: morto, maior que vivo, como dissera alguém diante do esquife onde repousava o corpo de Victor Hugo.Castro Alves nasceu, há 160 anos, no dia 14 de março de 1847, na fazenda Cabaceiras, distante 42km da vila de Nossa Senhora da Conceição de “Curralinho”, hoje município de Castro Alves, na Bahia, filho de Dr. Antônio José Alves, médico cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, e D. Clélia Brasília da Silva Castro. Saindo de “Curralinho”, manteve breve contato com o município de Muritiba e foi residir na cidade São Félix, localizada às margens do rio Paraguaçu, ligada à cidade de Cachoeira pela ponte D. Pedro II, recôncavo baiano, onde aprendeu a ler e a escrever.
Mudando-se para a Cidade da Bahia em 1854, e, dois anos mais tarde, com o seu irmão José Antônio, ingressou no Ginásio Baiano, que tinha como fundador e dirigente, educador Abílio César Borges (1824-1891), futuro barão de Macaúbas (1881). É possível que, em sendo abolicionista ferrenho, César Borges (que também educou Ruy Barbosa e outros vultos de renome, no mesmo Ginásio Baiano) tenha influenciado Castro Alves na sua luta em prol da libertação dos escravos, inspiração dos poemas “A Canção do Africano”, “O Navio Negreiro” e “Vozes D’ África”, título que substituiu “Tragédia no Mar”.
Dia seguinte ao casamento de seu pai, em segundas núpcias, 26 de janeiro de1862, viaja para a capital pernambucana, a aprazível cidade do Recife, acompanhado do seu irmão José Antônio, prestando exames para admissão na Faculdade de Direito do Recife, quando foi reprovado. Mas, nem por isso abandonou a terra natal de Gilberto Freyre (1900-1987), Miguel Arraes de Alencar (1916-2005), Marco Antônio de Oliveira Maciel, Jarbas de Andrade Vasconcelos, Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque, Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente da Repúbica, e outros que se perderam na lembrança, não menos fulgentes, ali permanecendo glorificado como orador e poeta:
“Se Rui Barbosa, conterrâneo e contemporâneo, que chegou a dividir aposento com Castro Alves, em São Paulo, disse dele “encanto irresistível, desses que transfiguram um orador ou poeta”, o paraibano José Camelo de Mello Rezende, autor do clássico folheto de cordel O Pavão Misterioso, no auge de sua indignação, cantou: “Levantai-vos Castro Alves/do túmulo onde dormes/Vinde já neste momento/Com vossa lira feliz/Permutar as Vozes d’África’/Pelas de vosso país.” Em 1863, chega ao Recife a atriz portuguesa Eugênia Câmara e se apresenta no Teatro Santa Izabel.
Castro Alves toma conhecimento da sua presença e começam os jogos amorosos que tanto influenciariam o célebre e cruel destino do poeta.
Em 1864, o seu irmão suicidou em Curralinho e o poeta consegue transpor os umbrais da Faculdade de Direito do Recife, e viaja para a Bahia, retornando ao Recife no mês de março de 1865, quando deu início a um romance com a jovem Idalina, de quem muito pouco se sabe. Em dezembro, alistou-se no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai, onde jamais combateu.Escreve, ainda em 1864, Mocidade e Morte. O poeta Manuel Bandeira, relata:
“Mas, na noite de 9 de novembro de 1864, ao toque na meia-noite, na sotéia em que morava, o poeta, que sem dúvida se balançava na rêde, fumando muito, sentiu doer-lhe o peito, e um pressentimento sinistro passou-lhe na alma. Pela primeira vez, ia beber inspiração nas fontes da grande poesia: essa a importância do poema Mocidade e Morte na obra de Castro Alves. Uma dor individual, dessas para as quais “Deus criou a Afeição”, despertou no poeta os acentos supremos, que ele depois saberá entender às dores da humanidade, aos sofrimentos dos negros escravos (O Navio Negreiro), ao martírio de todo um continente (Vozes d’África).Não era mais o menino que brincava de poesia, era já o poeta-condor, que iniciava os seus vôos nos céus da verdadeira poesia. Naquela mesma noite escreve o poema, tema pessoal, logo alargado na antítese mocidade-morte, a mocidade borbulhante de gênio, sedenta de justiça, de amor e de glória, dolorosamente frustrada pela morte sete anos depois. A versão primitiva do poema foi conservada em autógrafo, documento precioso porque revela duas coisas: o poeta não se contentava com a forma em que lhe saíam os versos no primeiro momento de inspiração; na tarefa de os corrigir e completar procedia com segura intuição e fino gôsto. Cotejada a primeira versão com a que foi publicada pelo poeta em São Paulo, por volta de 68-69, verifica-se que tôdas as emendas foram para melhor. Baste um exemplo: o sexto verso da segunda oitava era na primeira versão Adornada com os prantos do arrebol, substituído na definitiva por Que banharam de pranto as alvoradas, verso que forma com o anterior um dístico de raro sortilégio verbal: Vem! formosa mulher – camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas.”
Em janeiro de 1866, morre o seu pai, e o poeta, agora acadêmico de Direito, volta ao Recife, funda uma sociedade abolicionista com Ruy Barbosa, e outros. Torna-se amante de Eugênia Câmara. Fase de profusa criação literária dá início ao seu proselitismo em defesa da abolição da escravatura e da implantação da República, fato que inspirou o seu drama “Gonzaga ou a Revolução de Minas”, apresentado na Bahia, em 1867, “um mau drama”, na opinião de Manuel Bandeira. Registros históricos dão conta de que a peça teve um assento triunfal, na sua estréia no Teatro São João, que se localizava derredor da praça que hoje tem o seu nome – Praça Castro Alves, hoje cantada em verso e prosa, onde se ergue a estátua em bronze do poeta e os seus restos mortais. Estava, então, ao lado do seu grande amor, Eugênia Câmara.
Neste mesmo ano, conforme notícia do historiador Ubaldo Osório, o poeta “João de Britto hospeda na casa em que viveu por muitos anos, na antiga Rua do Canal, em Itaparica, Castro Alves, que escreveu, nas praias da Ilha, a poesia Vozes Misteriosas, cujo autógrafo João de Brito, seu amigo e confidente, quatorze anos depois, oferecera a d. Adelaide Guimarães, irmã e colecionadora da obra esparsa do cantor peregrino que viveu “aureolado pelo sonho de imperecível beleza e tocado pela eterna flama do gênio”.
Recebidos por José de Alencar e visitados por Machado de Assis, Castro Alves e sua amante Eugênia Câmara desembarcam no Rio de Janeiro, fevereiro de 1868, e lá permanecem até março quando viajaram rumo a São Paulo. ”A sua passagem pelo Rio assinalou-se pelos mesmos triunfos já alcançados em Pernambuco.” Rompe com Eugênia Câmara.


Na paulicéia, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, sem prejuízo de sua presença nas tertúlias literárias, aproximando-o dos talentosos Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Fagundes Varela, Rodrigues Alves, Afonso Pena, e tantos outros. Era um jovem de 21 anos de idade! “Em São Paulo, nos fins de 68, feriu-se num pé com um tiro acidental por ocasião de uma caçada, do que resultou longa enfermidade, em que teve o poeta que se submeter a várias intervenções cirúrgicas e finalmente à amputação do pé. O depauperamento das forças conduziu-o à tuberculose pulmonar, a que sucumbiu em 71 no sertão de sua província natal. Antes de regressar a ela, publicara, em 70, o livro Espumas Flutuantes, cantos por ele definidos como rebentando por vêzes “o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo”.
Ruy Barbosa, companheiro e amigo do poeta, pronuncia, no décimo ano de sua morte, portanto, em 1881, o discurso ELOGIO DE CASTRO ALVES, iniciando-o assim, e dizendo em outros trechos, ipsis litteris:

“Minhas senhoras, meus senhores. Obedeço, ainda assustado e confundido, à honra da eleição que me eleva até aqui. Incapaz de ambicioná-la, nem sonhá-la, achei-me, todavia, desarmado para lhe resistir. Cativo à espontaneidade dela, não menos cativo me senti à origem dêste mandato, à bela geração nova de minha terra, aos moços, àqueles que, em todo país suscetível de ressurreição ou de progresso, representam a aliança da generosidade com a fôrça, o grande desinterêsse e as grandes aspirações.
Mas, designado para esta homenagem ao poeta o último dentre vós, arriscaste-vos a uma temeridade, que me deixou perplexo, enquanto não sondei ìntimamente o vosso desígnio. Agora sim, que o percebo. Não foi um excesso de inexperiente confiança; foi, pelo contrário, uma deliberação maduramente refletida: para demonstrar a profundeza da influência da obra dêsse extraordinário representante da nossa poesia, a voz que a houvesse de atestar, devia partir, não dos cimos, mais próximos do astro, deslumbrados pelo seu esplendor, escaldados pela sua irradiação, mas cá da humildade do vale, que de tão longe contempla. Neste sentido, a infimidade da escolha foi um novo tributo ao nome que comemorais, e a êste título a vossa designação acertou. Bastar-me-á, pois, ser sincero, para ser fiel à vossa intenção; tanto mais quanto, distanciado dêle pela diferença das nossas vocações, pele eminência da sua predestinação, bem perto estive de sua alma pela amizade. Ela, todavia, não foi longa, pôsto nos encontrássemos desde o primeiro período da vida, em que êle me precedeu apenas alguns anos. Estava reservada aos mais saudosos da nossa passagem pelos estudos superiores uma intimidade, que a comunhão do mesmo teto estreitou, na formosa S. Paulo, onde a musa celebrou uma vez a aliança do Paraguaçu com o Ipiranga, entre as flores agrestes de cuja várzea desfiou pròdigamente as pérolas dos seus versos, e cujas neblinas, ainda muito mais tarde, vagamente flutuavam nas cismas da sua poesia.”
Mais adiante: “Tacham-no de faltar-lhe a pureza clássica da palavra, que assinala as obras imperecíveis. Certamente a sua privilegiada capacidade se teria opulentado de recursos incalculáveis nas fontes da nossa prodigiosa língua, não menos soberana, não menos imensa, não menos onipotente que a de Itália. Ninguém mais do que eu deplora que lhe escasseie às vezes essa flor de vernaculidade que acrescenta ao gênio um perfume indizível. Para êsses fecundíssimos estudos tê-lo-ia atraído creio eu, o seu gosto de artista, se a morte lhe não vedasse a segunda florescência do seu talento; mas um feliz instinto da sua vocação supria freqüentemente nêle a aplicação investigadora, e revelou-lhe no idioma pátrio excelências de primeira água. Sem negar-lhe incorreções, de que aliás a crítica, que por aí o intenta deprimir, é de ordinário, entre nós, a primeira a dar os piores exemplos, o fato, não menos certo, é que elas não são numerosas, nem tão graves que maculem a beleza geral das suas concepções, ou prejudiquem aos grandes contornos da sua obra. São rápidos lapsos do cinzel, avultando-os, mas que não destroem a expressão e a grandeza do conjunto.Acusam-no de amplificações enormes, de hipérboles extravagantes, de empolas colossais. Não tenho, senhores, a dita de ser iniciado nos mistérios da crítica; o que não quer dizer que não compreenda a sua utilidade, quando ensina e adverte. Mas detesto-a, quando se reduz a amesquinhadora das grandes coisas, e amontoa acidentes, para converter em aleijão o sublime.”
“Possuamo-nos, senhores, agora da alma do poeta, para penetrar nessa galeria de fragmentos admiráveis da grande obra, de que o seu escopro talhou apenas membros dispersos, mas que, não obstante, ficará sendo no Brasil o “poeta dos escravos”. Aventuraram que êle lhe dedicara uma parte comparativamente insignificante da sua vida. Não é difícil porém, demonstrar que, pelo contrário, essa idéia sempre o absorveu quase totalmente; que da sua existência êle empregou a mais extensa quadra, a melhor sazão e os mais abençoados frutos nesse pensamento imortalizador. Desde 1865 votou o poeta seu canto a essa causa divina: Traze a bênção de Deus ao cativeiro; Levanta a Deus do cativeiro o grito (Castro Alves: Espumas Flutuantes). É a profissão de fé do apostolado a que se consagra. Na espinhosa jornada Deus acompanhe o peregrino audaz (Espumas Flutuantes).


Desde então começa a aureolar da sua poesia a raça vitimada. Mas, acenando com a liberdade às gerações nascentes, não esquece os que cerraram os olhos no cativeiro; e, nos primeiros passos da sua peregrinação, destaca-se a imagem do poeta, adorável como uma evocação evangélica da caridade, aljofrando de pranto a lápide nua do escravo:
Caminheiro, do escravo desgraçado O sono agora mesmo começou. Não lhe toques no leito do noivado: Há pouco a liberdade o desposou (Castro Alves: A cruz da estrada, in Os Escravos). Não é, porém, uma salmodia o que êle empreende, mas um combate. Quer intervir profundamente na ação social. A impaciência do reformador freme no peito do poeta contra a tergiversação dos homens, capazes de querer Que o porvir na ante-sala espere o instante, Em que o deixem subir (Castro Alves: Estrofes do Solitário) Canta, batalha e vaticina. Essa lei que redimiu a maternidade aos descendentes de África, não a antevedes, como ao relâmpago de uma profecia, nesta súplica encantadora? Senhor Deus, dá que a bôca da inocência. Possa ao menos sorrir, Como a flor da granada abrindo as pétalas Da alvorada ao surgir (Castro Alves: Súplica) Só seis anos mais tarde se decretou a reforma de 28 de setembro.
Mas a semente era de benção, e germinou muito antes; porque já em 1869, numa loja maçônica, a América, infatigável semeadora de inteligência e liberdade em São Paulo, um grupo de moços, entre os quais tive a fortuna de achar-me (permiti à minha memória a legítima satisfação desta reminiscência despretensiosa) promovia, e fazia adotar como compromisso obrigatório a todos os membros daquela família, a emancipação dos frutos da escrava.
Mas a musa abolicionista não é só a vidente, a cujos olhos se faz diáfano o porvir: é ainda a Nêmesis do remorso, mergulhando nos abismos dessa história tenebrosa da escravidão, para extrair de lá nos sofrimentos seculares do cativo o corpo de delito de barbaria da sociedade opressora.
A voz do poeta, projeta ao longe a sua sombra sinistra esse quadro técnico do Navio Negreiro, necrópole flutuante, onde os sepultados
Nem são livres... p’ra morrer;
Onde o látego mede a uma coréia de fantasmas vivos a cadência de uma dança inaudita, e em tôrno do qual o mar parece perder-se num círculo infinito de gemidos. A exclamação shakespeariana prorrompe de tôdas as almas: “pois os céus puderam presenciá-lo, sem se abalarem? – Did heaven look on, And would not take their part? (Shakespeare: Macbeth, IV,III, 223).
And wouldO patriotismo chora nos olhos do poeta:
Existe um povo que a bandeira emprestaP’ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,Que impudente na gávea tripudia?!... Silêncio!... Musa! Chora tanto,
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Para tamanha indignação, porém, não havia lágrimas bastantes: a chama estua, rebenta, e estala num fuzilar de cólera, que varre o oceano, e rasga de extremo a extremo o horizonte:
Andrada! Arranca êsse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!
O assunto encarna-se no poeta; as chagas da raça crucificada reabrem-se-lhe nos cantos. O cativo representa-se alí pelas suas duas faces: ora Cristo, ora ódio. O ódio é o “Bandido Negro”, a “seara vermelha” êsse rubro cântico de Espártaco, onde vibram dessas frases “para se ulularem” como os terrores de Macbeth, “na solidão de ares desertos, longe de ouvidos humanos”:
But I have wordsThat would be howl’d out in the desert air,Where hearing should not latch them. (Shakespeare: Macbeth, IV, III, 195).
O Cristo é essa dorida inspiração das Vozes d’África; essa mãe que traz Filhos e algemas nos braços; êsse hálito expirante, que dir-se-ia exalado de um Gólgota, quando a agonia borbota neste grito:Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?
Aqui deixamos este esforço singelíssimo; uma lembrança daquele que embalsamou os ares perfumados onde adejam as poesias. Conseguiu a proeza de unir idéia e ação, raramente juntas.
Luís D’Avelosa

Referências: - Castro Alves. Wikipédia.

Rabelo. Laurindo. José da Silva. O GÊNIO E A MORTE. JORNAL DA POESIA.

Sena. Consuelo Pondé. CASTRO ALVES – A ÍNDOLE DE CECÉU. jornal A TARDE, 15/03/97, in JORNAL DA POESIA.

POESIAS COMPLETAS DE CASTRO ALVES. Notícia sobre o Poeta. Prefácio de Manuel - Bandeira.

OSÓRIO. UBALDO. A Ilha de Itaparica – História e Tradição. Fundação Cultural do Estado da Bahia, IV edição, 1979, p. 185.

Ruy Barbosa. Elogio de Castro Alves. Discurso pronunciado na comemoração do décimo aniversário da morte do poeta. Composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais” Ltda., São Paulo, para “EDIÇÃO “ORGANIZAÇÃO SIMÕES”, Rio, em 1950.

MATOS. Edilene. CASTRO ALVES – A sedução da voz – o verso. Jornal A TARDE, 15/03/97, in Jornal da Poesia.MANOEL BANDEIRA. Prefácio. Poesias Completas de Castro Alves.

Postado por Marco Antonio de Cádiz

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DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO

Os institutos da dispensa e da inexigibilidade de licitação, têm provocado polêmicas quando invocados pelos órgãos licitadores, obrigados ao cumprimento das disposições insertas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal.
Aliás, não só têm causado controvérsias, mas escândalos que a mídia revela, bem assim sindicâncias, inquéritos, processos, apenações, inclusive as que inspiram demissões de funcionários públicos ou comissionados (alto e baixo escalão), que, por ignorância ou má fé (esta prepondera), pretendem usar e abusar do instituto logo que a “necessidade” se faz presente.
A lei é translúcida e não permite equívocos, apontando as hipóteses em que a dispensa e a inexigibilidade podem e devem ser exercitadas, não permitindo interpretações ampliadas ou inconseqüentes para se eximirem da obrigatoriedade de licitar, ou não. Além disso, a doutrina e a jurisprudência derredor dos temas são riquíssimas. Assim, o Art. 24, I (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 27.5.98) usque XXVIII, Parágrafo Único, elenca os casos em que a licitação é dispensável.
Entretanto, desnecessário dizer que, não raras vezes, o inciso IV do Art. 24 (nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos) é chamado a pêlo, indevida e propositadamente, servindo-se, o intérprete de má fé, dos vocábulos emergência e urgência, ou mesmo a calamidade, naquele inciso insertos, para encobrir um mau planejamento, inconsistente, desgarrado da realidade, ou uma programação inescrupulosa da Administração.

Era uma das idiossincrasias de Voltaire, antes de quaisquer discussões, solicitar do interlocutor, a definição dos seus termos. Portanto, vejamos a significação precisa desses vocábulos, inclusive a calamidade, para que não pairem dúvidas. Ensina DE PLÁCIDO E SILVA, (Vocabulário Jurídico, 5ª edição, Forense, 1978), verbis:
EMERGÊNCIA. Derivado de emergir, do latim emergere (mostrar-se, aparecer, nascer), é aplicado vulgarmente para designar toda situação incidente ou ocorrência fortuita, que não era, pois, nem prevista, nem esperada. Em tal sentido, portanto, tem equivalência ou analogia com os vocábulos eventualidade, contingência, transe ou seja com todas as expressões que venham significar mudanças de situações ou alterações possíveis, decorrentes de eventos ou fatos que chegam ou nascem naturalmente...Emergência possui bem essa significação de incerteza, que se pode gerar de eventos perigosos e inesperados.

URGÊNCIA. Do latim "urgentia" de "urgere" (urgir, estar iminente), exprime a qualidade do que é urgente, isto é, é premente, é imperioso, é de necessidade imediata, não deve ser protelado, sob pena de provocar, ou ocasionar um dano, ou um prejuízo. Assim, assinala o estado das coisas que se devem fazer imediatamente por imperiosa necessidade, e para que se evitem males, ou perdas, conseqüentes de maiores delongas, ou protelações. Juridicamente, a justificativa da urgência provém, invariavelmente, não somente da necessidade da feitura das coisas, como do receio, ou do temor, de que qualquer demora, ou tardança, possa trazer prejuízos. O reconhecimento da urgência, em regra, estabelece a preferência em relação à coisa, ou ao fato, para que seja feita, ou executado, em primeiro lugar e em maior brevidade, dispensando-se, mesmo, em certos casos, o cumprimento de certas formalidades, ou o decurso de prazo, próprios aos casos normais.

CALAMIDADE. Vocábulo formado da palavra latina calamitas, quer significar todo evento infeliz ou desgraça, que venha transtornar, aflitivamente, toda vida normal de uma cidade ou vila, ou de parte dela, por tal forma que os poderes públicos se vêm na contingência de tomar medidas assecuratórias do sossego público e de proteção aos habitantes da zona por ela atingida, medidas estas que se designam socorros públicos. Vários fatores podem motivar a calamidade: a guerra, as inundações, os terremotos, as epidemias, as secas prolongadas, enfim, qualquer outro flagelo que se mostre ruinoso ou prejudicial à coletividade, exigindo enérgicas e imediatas medidas de proteção, para que as populações por eles atingidas não venham a perecer ou não fiquem em doloroso desamparo. Giza o Ar. 8º, caput, e seu Parágrafo Único, verbis:

Art. 8º - A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de execução”. Certamente, incuriosa no planejamento, provocando atrasos na execução do objeto da licitação – o que, sem dúvida, implicaria em aumento de custos – não pode a Administração, elidir o que a lei quer sob alegações de cumprimento do que negligenciou quando da elaboração do edital, lei interna do procedimento licitatório, e contratar diretamente.
Praágrafo Único - É proibido o retardamento imotivado da execução de obra ou serviço, ou de suas parcelas, se existente previsão orçamentária para sua execução total, salvo insuficiência financeira ou comprovado motivo de ordem técnica, justificados em despacho circunstanciado da autoridade a que se refere o art. 26 desta Lei”.

Conforme o magistério do prof. Meirelles, “A emergência há de ser reconhecida e declarada em cada caso, a fim de justificar a dispensa da licitação para obra, serviços, compras ou alienações relacionadas com a anormalidade que a Administração visa corrigir, ou com o prejuízo a ser evitado. Nisto se distingue dos casos de guerra, grave perturbação da ordem ou calamidade pública em que a anormalidade ou risco é generalizado, autorizando a dispensa de licitação em toda a área atingida pelo evento” ( Licitação e Contrato Administrativo, 5ª edição, p. 94).
Mesmo assim, é bom frisar, não bastam as justificativas pertinentes da dispensa, previstas no Art. 26, caput, da Lei 8666/93, mas a contratação direta deve ser precedida da formalidade, também, exigida no Parágrafo Único do predito artigo, verbis:
Art. 26 - O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I– caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso;

II – razão da escolha do fornecedor ou executante;


III – justificativa do preço;
IV – documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados (Inciso incluído pela Lei nº 9.648, de 27.5.98).
Finalmente, é bom que se diga, os funcionários que compõem a Comissão de Licitação e os órgãos requisitantes, responsáveis pelos pedidos de licitação, devem atentar para os dispositivos elencados no Capítulo IV – DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E DA TUTELA JUDICIAL;

Seção I – Disposições Gerais;

Seção II – Das Sanções Administrativas;

Seção III – Dos crimes e das Penas;

Seção IV – Do Processo e do Procedimento Judicial, principalmente, ao que dispõe o caput do Art. 89 da lei específica, verbis:


Art. 89 - Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena – Detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Quanto à inexigibilidade de licitação, a lei é clara e, portanto, não se faz necessário a consulta ao seu espírito. A sua disciplina está prescrita nos Arts. 25, I, II, III, § 1º, §2º e Art. 26, Parágrafo Único I, II, III e IV (incluído pela Lei nº 9.648, de 1998) da legislação específica. A característica única desse instituto singular é a inviabilidade de competição, naquilo que predeterminam os dispositivos preditos.
A doutrina é exaustiva em comentários sobre a inexigibilidade, portanto, ocioso repisar o assunto. O que importa é o cumprimento da lei e, sempre, durante ou depois da elaboração das justificativas pertinentes para justificar a inexigibilidade, solicitar o nihil obstat dos departamentos jurídicos das instituições envolvidas. Os gestores têm o preconceituoso costume de não ouvirem os seus advogados (a maioria das vezes, propositalmente, os evitam para não "atrapalharem" o curso do procedimento administrativo), que ali estão para impedirem a conspurcação, e, portanto, garantirem a incolumidade dos princípios constitucionais e da legislação infraconstitucional.
Luiz de Carvalho Ramos
Advogado

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REMINISCÊNCIAS


Chegamos à cidade da ilha de Itaparica, situada no sudoeste da Baía de Todos os Santos, no mês de abril de 1954, a bordo do navio Mascote (diz o povo que o Mascote era um iate que pertencera ao ator americano Gary Cooper). Meu pai, agrônomo, inspetor zootécnico, foi nomeado para administrar (1954) a Fazenda Mocambo (vide Relatório, anexo único), gleba do Estado, localizada na parte oriental da ilha, onde se cultivava o coco e o dendê.Anoitecia. Relampejava, trovejava e chovia torrencialmente. Mar encapelado, a ventania envolta num frio incomodativo, revelava alto percentual de umidade. A primeira visão da ilha nos pareceu uma pintura impressionista. A cidade era um breu, melancólica, despovoada. Desembarcados, tomamos o caminho da Rua Cônego Fonseca Lima, onde residimos por seis anos (1954-1960).
Era um casarão construído no início do século XX, com nove quartos e duas grandes salas. Ao fundo se limitava com o mar. Na falta de luz elétrica, acendemos os candeeiros. Muita conversa, mas extenuados, fomos dormir vencidos pelo cansaço que nos envolve nessas circunstâncias. Os lençóis estavam muito frios. A casa era antiga, telha-vã sustentada por oito colunas grossas, também de madeira. Adormecemos sob um silêncio de profundezas.
Naquele tempo, tudo em volta era de um realismo fantástico. Era o luminoso dia seguinte. Os passarinhos cantavam nas duas mangueiras, enraizadas no pátio da residência dos Gordilho, defronte da nossa casa. Percebi que no dia anterior, na escuridão mal-assombrada, seria impossível vislumbrar o quanto era belo o “boulevard”, a Avenida São Jerônimo. Nos seus duzentos metros de comprimento, era sombreado por frondosos arbustos de fícus e mungubeiras, até nos confrontarmos com o Jardim do Forte, ao lado da bela Fortaleza de São Lourenço, o “Forte”.

O canto do bem-te-vi quebrava o silêncio. Tudo parecia de uma calmaria cabralina, rompida na maioria dos dias pelas chuvas torrenciais de abril, que encharcavam a cidade. Do Jardim do Forte, vislumbrávamos a cidade do Salvador, envolta em cerração. A maré vazia, “coroa” a descoberto, deixava exalar o estimulante cheiro de sal iodado. Assim dizia um primo nosso, que por lá esteve à procura de cura para os seus males, inspirando fundo:
- Ah! O ar iodado!...
O primeiro mês foi de inúmeras providências, incluindo a decisão materna que me obrigou a estudar com as freiras do Seminário São Francisco de Paula, uma vez que as matrículas regulares estavam encerradas. Assim, começariam as minhas incursões pela ilha adentro e a convivência com os nativos, descendentes de Catarina Paraguaçu, filha dileta do morubixaba Taparica, batizada Catarina do Brasil em Saint-Malô, França, no ano de 1525 (levada por um tal de Cartier, canadense, contrabandista de Pau Brasil) , Deus sabe a razão, herdeira das terras tupinambás, mulher do fidalgo da Casa Real Diogo Álvares Corrêa, o “Caramuru”, náufrago da Mariquita (1510), enseada rochosa onde o mar quebra forte, localizada no bairro do Rio Vermelho.
A primeira experiência foi com a pescaria. Logo, em companhia de meu pai, experiente com as coisas do mar, fui à loja do galego Joaquim, pessoa inesquecível pela bondade e retidão, onde havia todos os apetrechos de pesca, inclusive o jereré que possibilitou saborearmos as deliciosas e inesquecíveis moquecas de siri. Certamente, um dia de “grandes negócios”. Logo aprendi que a pescaria, além de uma atividade prazerosa, era uma arte. Os amadores e profissionais acorriam para a velha ponte de madeira ou arriscavam o mergulho sob a carcaça de um navio grego (explodiu com uma carga de carvão de pedra, nos anos 1930), santuário de piscosidade. Enfim, entre nós a pescaria era mesmo uma atividade gregária, portanto, não necessariamente um esporte dos que gostam de ficar a sós. Quase diariamente lá estava embaraçando-me nas linhas, chumbadas e anzóis, construindo amizades para sempre.
Lembro-me, perfeitamente, do pescador, Sr. Tote, e seus dois filhos, Ademir e Eduardo, homens de bem. Moravam aos fundos do solar João das Botas. Alugávamos o seu barco, vela de pena, e bordejávamos nas águas orientais, aos caprichos do "sopro" Nordeste, indo apoitar no Mutá (recôncavo), onde, após abraçarmos os amigos, inclusive "Jacaré", que nos acompanhava por todo canto, saboreávamos a "gasosa de limão" ou o "guaraná Fratteli Vita", hoje nas prateleiras da extinção.Em outras ocasiões, esticávamos até Cações, localidade próxima a Mutá, onde outras experiências aconteciam. O "velho" pedia a Tereza, uma mulata crudelíssima que "bulia" até com os meninos, e que, em nossos dias, seria uma linda pedofilazinha, para preparar a moqueca de caçonete! Que delícia! O molho lambão terminava por "canonizar" a iguaria.
Outros companheiros de estripulias: Gilberto, filho do sargento do Forte; Nenéu, Budião, Antônio França, advogado, e o irmão Aurelino, filhos do Sr. Dadi, outro cidadão inesquecível; Nadinho, um dos quinze filhos de Colô; Manuel "Sete Gatos" ou "Gato Sete"; Davino, que morava ao lado da padaria do Sr. "Dente"; meu querido amigo Roque, do Alto de Santo Antônio dos Navegantes, filho do Sr. Antônio (comerciante de prestígio e filantropo); os irmãos Borba Fróes: Jorge, advogado e meu querido colega do curso primário e de faculdade. Genial (sabia mais do que estudava), boêmio, um belo homem, agora na eternidade, aguardando a todos nós. Antônio, Edgard e Bertinho; Celso e Walter Veiga, e tantos outros companheiros de infância e adolescência.
Mas, estamos terminando o inverno. O famoso e “caliente” verão se aproxima, trazendo veranistas e todo um ânimo de divertimento e relaxamento da lida metropolitana. Para mim, era um sonho realizado, tudo acontecendo... O veraneio era uma festa. O sol brilhava, água morna do mar, as portas se abriam, o comércio ressurgia, os sinos repicavam, as missas se multiplicavam, o cassino do Grande Hotel reabria, os xodós aconteciam no frenesi romântico dos “anos dourados”.
Certo dia, apareceu na ilha um cidadão sírio-libanês, Luís, que instalou um barzinho nos fundos da Pensão Anita, antiga Casa dos Contratos, Praça da Piedade, onde se hospedou D. João VI, Pedro I e Pedro II, hoje sede da Secretaria de Turismo de Itaparica, que muito tem se ocupado em propagar a beleza insular. No Sírio, como chamávamos o "pub", políticos e banqueiros, empresários, profissionais liberais, estudantes (principalmente aqueles que acabavam de “passar” no exame vestibular) e todo o povo, comemoravam a vida com a saborosa cerveja, frango assado, frutos do mar, etc. Essa investida estendia-se até altas horas da madrugada, e na alvorada lá estávamos nos folguedos das libações.
Depois de muito lero-lero, íamos para a Fonte da Bica, que nasce no Alto de Santo Antônio dos Navegantes, onde sorvíamos a água mineral digestiva, curativa, milagrosa, famosa em todo o mundo. Desjejum feito, após um banho doce, voltávamos à Praia do Forte, onde tudo recomeçava. Mulheres não participavam dos “banquetes”... Eram outros tempos. As nossas namoradinhas eram “moças de família”. As “damas da noite” não apareciam. Eram o pecado encarnado.
Dia 7 de Janeiro, comemorativo da festa de Independência de Itaparica (1823). O “Carro do Caboclo” arrastava a história. Uma festa onde todos se irmanavam numa exaltação aos feitos heróicos que nos libertou do jugo português. O auge da celebração acontece no Campo Formoso, jardim público encantador, arborizado, rodeado por um cinema, cadeia, um posto de puericultura, o Seminário São Francisco de Paula, hoje Centro de Treinamento de Líderes, e pelos casarões antigos, inclusive o de propriedade do coronel da Guarda Nacional, José Paulo, irmão do historiador da ilha, também coronel da Guarda Nacional, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro.
Naquele ambiente, colorido e festivo, veranistas e o povo nativo se uniam com o propósito de comemorar os feitos heróicos dos itaparicanos. Ali, o sorveteiro, seu Moreira, personagem de livro, mercadejava a guloseima caseira, apreciada por todos. Aliás, o famoso sorveteiro também vendia nos conveses dos navios da linha Itaparica-Salvador, e vice-versa.
Durante os festejos, aproveitávamos para marcar o próximo encontro (das pencas)na Praça da Quitanda, local onde se reúnem todos os que estão pisando na terra dos desejos. Depois da caranguejada, íamos jogar pôquer aberto no Hotel Icaraí, por benevolência do seu proprietário, o inglês Samuel, israelita, um homem bom. Aí, era outra festa!... Como o bar do Sírio ficava defronte do hotel, sempre o visitávamos depois das partidas, lá bebericando até a atracação do navio, à tardinha, sol poente.
Havia na cidade um cinema que nada ficava a dever ao tema do festejado “Cinema Paradizo”, mas poucos freqüentavam, muito mais o povo da terra. Era desconfortável e com tecnologia ultrapassada, de modo que o filme partia-se a todo o momento, terminando a sessão em tempo muito além do esperado. Além do mais, os "moleques" (como Valdemar, o proprietário, tachava os cinéfilos) faziam uma algazarra terrível. Bastava o fita partir-se e o caos se instalava na sala, onde ecoavam os gritos de "ladrão, cadê o meu dinheiro"? Valdemar respondia:
"Enquanto vocês não se educarem, não passarei o filme"!
Os apupos íam diminuindo, até à normalidade.A projeção continuava. Depois de quinze minutos, outro incidente e tudo recomeçava. Enfim, o filme começava às 20h e terminava depois das 23h. Mas, era divertido e todos saíam satisfeitos e sorridentes. Talvez , mais pelo que os esperava: a farra, a boêmia.
Impossível esquecer os baquistas interessantes, e outros de hábitos excêntricos, que impressionavam os circunstantes: Baiacu, Piroca, Americano, Maria de Lázaro, Maria Patejó e Ioiô C.V. Também, alguns veranistas (dias maravilhosos, que os anos não trazem mais), davam o tom da sua presença, "armando"...
Baiacu, apareceu em Itaparica nos idos de 1955/1956. Tinha mania pelo militarismo, carregando o seu inseparável cassetete de madeira. Quando nos via, fazia continência, ao que respondíamos com o mesmo cumprimento. Dessa forma, trabalhava na prefeitura e sofria do mal maior que desfigura a autoridade: o “abuso de poder”. Certa manhã, defronte do Solar Tenente João das Botas (um dos heróis das lutas pela Independência), na Praça da Quitanda, Piroca estava “discursando”, ensandecido pelo etanol, proferindo impropérios ao seu “primo rico”, pecuarista e açougueiro Caetano, que, alheio aos insultos costumeiros cuidava dos seus negócios. Eram primos carnais.
Aliás, em Itaparica todos são parentes, fenômeno das cidadezinhas. Então, “Baiacu”, resolveu aplicar uma cacetada em Piroca, abrindo-lhe o coro cabeludo. Afinal de contas ele era o “mantenedor” da ordem pública. Sangue no chão, gritos por todos os lados, uma verdadeira algazarra. O povo não admitiu o gesto do “soldado de milícia”, aprazando o seu banimento para o dia seguinte. Era uma indignação generalizada. Um estranho querendo mandar, “enquadrar” e espancar os nativos. Insuportável, jamais! Os nativos não aceitavam o ato tresloucado. Piroca, cidadão de origem familiar de destaque, diariamente, exceto nos finais de semana, postava-se “na Praça da Quitanda, e do seu ângulo “desmoralizava” e desafiava Caetano, sem ligar para o conjunto de facas do açougue, machadinhas e furadores, xingando até a sua própria mãe, e o chamava para a luta corporal a todo tempo. Era um discurso de horas, quase ininteligível. Caetano era o seu único alvo. Mas, o primo rico não perdia o aplomb.
Americano, era filho de Nazaré das Farinhas e lá viveu durante alguns anos no ofício de alfaiate. Diz a história oral, que ele sofreu uma desilusão amorosa e afogou-se na cachaça. Perambulava pelas ruas da cidade, passos ligeiros, sem cambalear, apenas balançando os braços descompassadamente. Dormia numa varanda, no Campo Formoso. Não criava caso, mas não falava com ninguém, a não ser se “cruzasse” com um transeunte, quando dizia: “Apoiado!”. Só isso, só esta asserção.
Maria de Lázaro, que de tão magra parecia sempre de perfil, como diria Vargas Llosa referindo-se a Antônio Conselheiro, era uma anciã afro-descendente que diziam enlouquecida por amor perdido. Seu ex-marido, Lázaro, era um mestre de obras conceituado, que a morte surpreendeu, deixando Maria na viuvez e penúria. Não fosse o seu sobrinho, Astério, pescador e vendedor de peixes, a franzina viúva morreria muito e muito antes dos seus 106 anos de existência terrena [encontrava-me ao seu lado, sempre triste). Maria tinha um hábito do qual ela nunca abdicou: acordava, tomava o seu cafezinho preto, caminhava alguns passos até a igrejinha de Santo Antonio dos Navegantes, orava, e logo estava na Fonte da Bica enchendo a sua garrafa d´água. “Água santa”, como ela propalava convicta. Sempre estava derredor de nossa família, uma vez que foi babá de minha irmã Lêda. Dizia minha mãe que ela dormia catando camarões. Era a repulsa à obrigatoriedade laboral, uma das qualidades dos nativos. Maria era divertida, cantava canções antiqüíssimas e, nos intervalos, sorvia um gole da água santa. Lembro-me do início de uma dessas canções: “Que noite tão bela que belo luar, não vejo a donzela a quem desejo amar...” Era católica e ignorava as batidas dos tambores que ecoavam dos terreiros de candomblé do Alto de Santo Antônio dos Navegantes e de Amoreiras. Dizia com orgulho e solene circunspecção: “Não gosto de candomblés. Meu Deus é Santo Antônio.” Vestia-se ainda com modelos do século XIX, vestidos que chegavam quase a cobrir-lhe os pés, sempre escuros com florzinhas brancas e sandálias de couro cru, bem gastas pelo uso.
Maria Patejó, estava sempre sobre si, ou seja, a sua coluna era absolutamente deformada, arqueada. Morava e zelava por um casarão antigo, na avenida que nos leva à Fonte da Bica. Nós, meninos terríveis, brincávamos com ela o que a enfurecia, batendo com o ancinho no portão de ferro, sempre fechado a cadeado, proferindo palavrões. Xingava-nos, esbravejando. Nada se sabia da sua vida, mas daquela casa ela não saía para lugar algum. Viveu mais de um século.
Ioiô C.V, somente saía à noite. Traje passeio completo de casimira azul-marinho, camisa branca, gravata de cor cinza e sapatos pretos de oleado. Era um dos Veiga, família tradicional da ilha, outrora detentora de poder político e muitas riquezas. O cabelo negro, pintado, repartido ao meio e penteado ao gosto das brilhantinas, contrastava com a lividez do rosto e mãos. Vivia sob a sombra de um passado remoto. Assim, ele andava por toda a cidade, abraçado pela noite sob o reluzir das estrelas.
Essa era a nossa ilha encantada!
Luiz de Carvalho Ramos
Anexo - Relatório apresentado ao Secretário da Agricultura, pelo engº agrônomo João Velloso Ramos, ao assumir a administração da Fazenda Mocambo.
A "Fazenda Mocambo", está localizada no extremo norte-oriental da ilha de Itaparica. Uma gleba de propriedade do governo da Bahia. Em 1954, o governador Régis Pacheco, nomeou o engº agrônomo JOÃO VELLOSO RAMOS, administrador, gestão que perdurou por cinco anos, tempo em que o referido agrônomo residiu na cidade de Itaparica, na Rua Cônego Fonseca Lima, nº 9, início do famoso "boulevard", até o ano de 1960 quando retornou, com sua família, a Salvador.
No Mocambo, cultivava-se o coco e o dendê. Quero dizer, por oportuno, que o Dr. João Velloso Ramos (n. 29.05.1901- 16.03.1974) era meu pai. Então, nomeado e empossado pelo governador Régis Pacheco, elaborou o seguinte relatório:
"Senhor Secretário da Agricultura da Bahia, prof. Nestor Duarte:
1. A "Fazenda Mocambo" - 198 ha., 24 a. e 34 ca. de boas terras situadas no extremo norte-oriental da vizinha Ilha de Itaparica - é um dos mais valiosos bens agrícolas do nosso Estado. A despeito, porém, de sua potencialidade econômica, e não obstante as privilegiadas condições geográficas, agrícolas, e mesmo panorâmicas que oferece, essa patrimônio tem sido menosprezado pelos governos passados, a julgar pelo estado de abandono em que me foi transmitido. E, para efeito de documentação tão somente, relatar esse estado seu; dar conta da minha atividade na administração; analisar, em bases concretas, as múltiplas conveniências da sua recuperação; fornecer, como contribuição despretensiosa ao programa administrativo de V.Exa. no particular, um projeto de plano para essa recuperação, eis os objetivos únicos do presente trabalho. Para melhor esclarecimento, achamos oportuno, antes de entrar no assunto propriamente dito, juntar-lhe alguns dados históricos.
2. Em 1936, o Sr. Juracy [Montenegro] Magalhães então Interventor da Bahia, num expressivo testemunho de larga visão administrativa, houve por bem incorporar a "Fazenda Mocambo" ao patrimônio do Estado, para que dela se fizesse, em bases racionais, uma estação frutícola modelo. A 19 de novembro de 1946, pelo Decreto-Lei 879, teve sua "posse", "responsabilidade e manutenção" e "todos os encargos atinentes aos estudos, análises e pesquisas inerentes às palmáceas do gênero Elaes guineensis e os relativos à indústria de óleos, manteigas, gorduras e sementes oleaginosas em geral", transferidos ao I.Q.A.T.B. hoje I.T.B [Instituto de Terras da Bahia-ITB]. Em 1947 era revertida à Secretaria da Agricultura para ser, em 1949, arrendada à exploração particular, mediante acordo. Expirado o prazo de vigência desse acordo, quando já à frente da Secretaria da Agricultura o Engº Antônio Nonato Marques, e por ato administrativo deste, teve por fim a "Fazenda Mocambo", em julho de 1954, sua administração transferida à minha responsabilidade, condição em que se acha até o momento.
3. A "Fazenda Mocambo" como a recebi. Das casas residenciais, a principal, uma mansão que, na pujança dos seus alicerces, na fartura das suas dimensões e na fisionomia arquitetônica de suas formas, mostra ainda sinais de sua imponência histórica, achei-a em tão ruinoso estado que se torna ainda duvidosa a viabilidade de sua recuperação. A casa menor, vizinha daquela, a despeito dos requisitos de higiene e conforto de que mostra haver sido dotada noutros tempos, encontrei inabitável pela sujeira, carecendo reparos inadiáveis. O grupo residencial de operários - uma afronta aos sentimentos de humanidade, uma negação requintada dos mais elementares preceitos de higiene - um quadro típico de miséria. As casas outras de operários, custa-nos aceitar que abriguem semelhantes nossos. A usina de extração de óleo de dendê, órgão central da Fazenda, não obstante a solidez de sua estrutura, carecendo de reparos na cobertura e na parte mecânica. A usina de energia - um valioso termo-gerador Deutz - parado por falta de reparo e oxidado à falta de conservação. A bomba rotativa elevadora de água nas mesmas condições. Disso resulta a falta dos recursos básicos à habitação nas casas da administração - luz e água. O gado, representado por algumas cabeças de muar imprestáveis e 4 de bovino, velhíssimas. Um bom viveiro, com capacidade provada de 150 a 200 Kg de peixe por ano, transformado em pântano. As aguadas sujas e quase aterradas. As cêrcas caíram na maioria de sua extensão. De máquinas e instrumentos agrícolas apenas encontrei, e ali estão restos esparsos, que amontoei na casa grande. Os 300 coqueiros, somente pela absoluta nudez, mostravam um dos poucos indícios de que ali houvesse passado a mão do homem. A preciosa população de dendezeiros, infestada de pragas e doenças, carecendo de tratos culturais, decadente enfim. As mangueiras, pela qualidade e abundância dos frutos já têm tradição, na exiguidade das suas últimas safras mostra a falta de limpeza e tratos outros. De outras culturas não encontrei vestígio sequer. Uma ponte de atracação, de madeira, foi uma das benfeitorias que encontrei em bom estado. Como meio de condução, apenas encontrei restos de uma charrete que não pude recompor.
4. Providências administrativas. As condições acima documentadas determinaram a seguinte situação: impossibilidade de residir na sede da fazenda dado o estado das habitações, absoluta falta de água, de luz e de condução;a renda da usina reduzida quase a zero em virtude, já das péssimas condições técnicas, já da escassez do dendê determinada pelo mau estado do dendezal. As mangueiras não frutificavam. Além dessas circunstâncias, contribuintes todas para a redução da receita, a falta de conservação requeria despesas maiores para o restabelecimento da organização e manutenção do pessoal. Recorri nessa altura, como único recurso, às providências do Governo, tendo conseguido mesmo a visita do próprio Governador. E, de promessa em promessa, vi correr o tempo, vi se assoberbarem os compromissos, vi tornar-se calamitosa a situação dos trabalhadores, sem que nenhum auxílio me viesse. Tive-me então na contingência de dispor dos bovinos para pagar o pessoal, vender telhas velhas as que restavam das que vinham sendo roubadas para custear as despesas de reparos inadiáveis da usina de óleo; e de favores constantes, ter condução e mão de obra mecânica para esses reparos. O trato do dendezal e das mangueiras; a limpeza de viveiros e aguadas, e derruba do mato que ainda hoje barra o acesso à residência principal - são cuidados que tiveram que ser sacrificados.E a situação geral da Fazenda, se não se agravou, mau grado meu, também não foi substancialmente melhorada até o momento em que, profissionalmente pesaroso, faço o presente relato.
5. O que pode representar a Fazenda Mocambo. Racionalmente organizada e judiciosamente administrada, a Fazenda Mocambo poderá preencher simultaneamente as seguintes funções: órgão de produção, estação de estudos originais de cultura do dendezeiro e industrialização de seus frutos; estação de repouso. A favor da oportunidade das duas primeiras cogitações, depõem, a importância econômica já hoje apreciável dos produtos do dendê, e para cujas possibilidades futuras é difícil prever limitações; as condições agrícolas que oferece, provadamente favoráveis à cultura de pomareiras e hortícolas, a disponibilidade da matéria prima - que hoje sabemos de boa qualidade - para as indústrias de cerâmica e de cal. Todas as condições com explorabilidade altamente favorecida pela situação e disposição geográficas que garantem, ao lado de fácil ligação com a Capital, acesso aberto ao transporte marítimo pelos ancoradouros naturais e ponte de atracação de que dispõe. Quanto a convir como estação de repouso, considerem-se as suas privilegiadas condições panorâmicas e climáticas. Ao lado dessas conveniências intrínsecas na sua exploração, oferece a Fazenda Mocambo a singular garantia de se bastar financeiramente, graças à produção de óleo de dendê e de produtos cerâmicos que oferece. Para que essa auto-suficiência se atinja é suficiente uma inversão inicial para a sua reorganização.
6. Bases para recuperação da Fazenda. A reorganização da Fazenda, de modo a pô-la em regime de funcionamento regular, constaria das seguintes providências e recursos:
a) Casas e abrigos. Reforma das casas, grupos de residências e abrigos de máquinas;
b) Usina. A Reforma da cobertura; reforma da chaminé da caldeira e demais peças da máquina cujo mau estado compromete o rendimento econômico da produção de óleo; se possível, troca da caldeira por outra de maior capacidade afim de que se possa, a um só tempo, cosinhar o azeite e virar as máquinas; reforma do sistema de cozinhamento do dendê; substituir, no decantador, a serpentina por camisa de aquecimento pela base; modificar a despolpadeira de modo a que funcione automaticamente, dispensando um operário; adquirir outra prensa ou trocar a existente por outra de maior capacidade para que possa trabalhar em regime contínuo, e pequena adaptação para os caracteres especiais do óleo de dendê; aquisição de 8 carros de mão para entrada das amêndoas;
c) Os dendezeiros. Limpar o dendezal e ampliar, racionalmente, a sua população, tendo em vista a seleção genética e as condições de cultivo. Paralelamente, poderá a S.A.I.C (Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio) dispor desse material para pesquisa;
d) O grupo gerador e a bomba. Reparar e manter;
e) Mangueiras. Limpar, fertilizar e replantar;
f) Outras culturas.São viáveis ainda, conforme conclusão de experimentos realizados, as seguintes culturas: bananeira, abacateiro, sapotizeiro e hortaliças em geral;
g) Forragem. Replanta das capineiras antigas;
h) Pecuária. Dez vacas leiteiras para abastecimento da fazenda; suinos e aves; muares para carga, e cavalos para montaria do administrador. Limpeza e restauração do viveiro;
i) Reparo de cêrcas e construção de outras;
j) Condução. Uma viatura (Jeep ou caminhonete) para transporte de pessoal e pequenas cargas; uma canoa para transporte por mar e pescaria.
7. Com recursos para essas simples providências poderia, como dissemos, ser a Fazenda Mocambo transformada, do triste quadro que é hoje, uma fazenda modelar; poderia a Fazenda Mocambo, em toda a extensão demográfica que influência e cobre, restaurar a fé e o acatamento que, para bom termo dos empreendimentos governamentais, precisam contar os administradores da coisa pública; poderia a Fazenda Mocambo, da negação berrante que é das possibilidades administrativas do Governo, fazer-se um afirmação de sua capacidade realizadora, um testemunho da sua ação educativa, uma prova de que tem por merecer a confiança do povo que o constitui. Por tudo isso, estou certo de que a vigência da nova ordem governamental da Bahia poderá a Fazenda Mocambo mostrar a sua razão de ser como patrimônio do Estado.E na tranqüilidade dessa certeza, aguardo o pronunciamento de V.Exa., oferecendo-me para, quando julgado oportuno, apresentar um plano com orçamento para realização das medidas que ora, com a devida venia, permito-me sugerir.
Mando a V.Exa, Senhor Secretário, minhas melhores expressões de consideração e apreço.
Salvador, 23 de abril de 1955.
João Velloso Ramos
Engº Agrônomo

Deixou este mundo para sempre, um homem que pisou em louros e espinhos; amado e odiado; seguia em frente, arrastando aplausos de reconhecimento e apupos de repúdio; conviveu com o joio e o trigo; sabia ser terno e acrimonioso, portanto, fiel à dualidade da condição natural de todas as existências; acreditava que o exercício do poder uma trama cotidiana; na sua casa, serviu bobó de camarão a um poderoso da plutocracia, Dr. Robero Marinho, dono das Organizações Glogo, e a um ditador comunista, o ditador Fidel Castro; sabia ser a inveja, a hipertrofia do ciúme; que a paixão, ao contrário do que muitos crêem, pode ser vitalícia; amou a sua terra natal e jamais a abandonou; era chamado de “meu pai”, pela patuléia; de “meu chefe”, “meu amigo”, por leais seguidores ou oportunistas empedernidos; apoiou a ditadura militar e com ela rompeu, optando por não abandonar a sua ambição política; só não alcançou a glória porque ela não existe. Bom para alguns e mal para outros, Serafim e Satanás... Apenas um homem, igual a todos nós.
Seria muito importante que se entendesse, de uma vez por todas, ser a perfeição uma impossibilidade humana, um ideal inatingível, e que, ao lado dessa verdade, cultivasse a virtude do perdão e a grandeza que encerra o sentimento de gratidão. Sejamos sinceros, pelo menos, com nós mesmos. O deserto é deslumbrante, ardente, misterioso, surpreendente. Já pensaram num homem sem virtudes e sem defeitos? Seria insosso... Quase pronto: Quasímodo, sem ler Petrarca, sem os sinos de Notre Dame e sem a paixão pela cigana Esmeralda!...
No ano de 1969, que precedeu a sua eleição, o povo de Salvador o apoiava na sua totalidade. Ainda não era o "Cabeça Branca", mas era o escolhido. Ninguém melhor do que Jorge Amado, para expressar, em carta, esse sentimento que, até a sua morte, banhou o povo da Bahia:
“Mestre Antonio Carlos, muito obrigado pelos votos de boas vindas que você mandou me formular no cais.Aí vai para você um livro inglês, sério e pesquisado, sobre um poderoso detalhe de beleza da Bahia: a Santa Casa de Misericórdia. Quando o vi na vitrine da livraria em Oxford Street, pensei comigo,: vou levá-lo para Antonio Carlos, tudo quanto se refere à cidade do Salvador é assunto seu.Ora, Mestre Antonio, cheguei dia 30 e há uma semana não faço outra coisa se não andar a cidade de lado a lado, de ponta a ponta pois as saudades eram imensas e quero novamente encher os olhos com a luz, a cor, a magia, a beleza de Salvador da Bahia de Todos os Santos. Aurélio, meu chofer, diverte-se às minhas custas nesses novos caminhos, nas avenidas, ligações, pontes, nos túneis e viadutos, nas incontáveis léguas de asfalto, nessa obra monumental, leva-me de um extremo a outro da cidade num tempo mínimo. Daqui, de Nazaré, vamos sair num instante na Cidade Baixa, onde era a feira de Água de Meninos, esclarece-me e eu não acredito mas é verdade. O homem é um monstro”.
“O escritor itaparicano, João Ubaldo Ribeiro, um dos maiores nomes da intelectualidade brasileira, reconhecido em todo o mundo, chegou a revelar: “Já critiquei várias vezes o Antonio Carlos Magalhães, mas ao me encontrar ele já vai dizendo: “Ó, ilustre representante da esquerda democrática... “É o mais perfeito homem de poder que conheci”.
Na eleição de 94 disparou contra os adversários “Lula foi rejuvenescer com o velho Brizola. Brizola foi deixar a sua aposentadoria com o Lula, que não trabalha há muito, muito tempo. É a preguiça de Brizola, que nunca trabalhou em governo algum, como Lula que vive como um profiteur do PT.” Mas a respeito do presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem ajudou a eleger, disse:
“O governo começou errado. Não preparou, no período de eleição para a posse, um grupo para trabalhar projetos. Se tivesse trabalhando um projeto, estaríamos agora discutindo coisas concretas. Perdeu-se muito tempo”.
Muito e muito, há de se dizer do homem Antonio Carlos. Alguns, de caráter menor, eivados de tibiezas, rancorosos, retrorsos, se furtarão a fazê-lo. Hoje mesmo, muitos maboqueiros procuram se esconder temendo serem identificados como "crias" ou "amigos" de Antonio Carlos. Esses, como queria Lampião, mereciam a inumação, sentados, claro, quando morressem. Outros, menos acidulados, mosaicistas, saberão, pelo convívio diuturno com o homem de poder, político na completude na palavra, reconhecer os seus méritos, fazendo-lhe justiça.

Bahia, 21 de julho de 2007.

Luiz de Carvalho Ramos

Referência:- Matos. José Batista Freitas. AMC - O MITO. Editora BDA-Bahia. 4ª edição. Feira de Santana, 2000.


SURREXIT


“Ressurgir! Toda a doçura e todo o vigor da fé se resumem nesta palavra. É a flor do calvário, a flor da cruz. O tremendo horror daquele martírio tenebroso desabotoa neste sorriso, e a humanidade renasce todos os anos a esse raio de bondade, como a formosura da terra à alegria indizível da manhã, o prelúdio do sol, o grande benfeitor das coisas. O homem, cercado da morte de todos os lados, não podia conceber este ideal da eternidade se não fosse por uma réstia do seu mistério radiante, divinamente revelado às criaturas Nossos sonhos não inventam: variam apenas os elementos da experiência, as formas da natureza. Tem a fantasia dos viventes apenas uma palheta: a das tintas, que o espetáculo do universo lhes imprime na retina. E, no universo, tudo cai, tudo passa, tudo se esvai, tudo finda.Nesse desbotar, nesse perecer de tudo, não havia o matiz, de que se debuxou um dia, na consciência humana, o horizonte da ressurreição.
Ressurgir! Digam aqueles que têm amado, e sentiram a sombra da agonia projetar-se no semblante de um ente estremecido, qual a impressão que lhe transpassava o seio nesses momentos de infinita amargura. Digam os que fecharam os olhos a seus pais, a seus filhos, a suas esposas. Digam os que já viram apagar numa cabeça inclinada para a terra a beleza, o gênio, o heroísmo, ou o amor. Digam os que assistiram, regelados ao assentar da última pedra sobre o ataúde de um coração, pelo qual dariam o seu. Digam que outra é, nesses transes, a vibração do peito despedaçado, senão esta: sentimento da perda irrevogável. Quem, senão Deus mesmo, nesse soçobro final de todas as esperanças, poderia evocar do abismo taciturno, onde só se ouve o cair da terra sobre os mortos, esta alegria, este alvoroço, este azul, esta irradiação resplandecente, este dia infinito, a ressurreição?

Ressurgir! Deus nosso, tu só poderias ser o poeta desse cântico, mais maravilhoso do que a criação inteira: só tu poderias extrair da angústia de Getsêmani e das torturas do Gólgota a placidez, a transparência, a segurança deste consolo, dos teus espinhos esta suavidade, dos teus cravos esta carícia, da mirta amarga este favo, do teu abandono este amparo supremo, do teu sangue vertido a reconciliação com o sofrimento, a intuição das virtudes benfazejas da dor, o prazer inefável da clemência, divino sabor da caridade, a prelibação da tua presença, nesta alvorada, o paraíso da ressurreição.
Ressurgir! Tu ressurges todos os dias, com a mesma periodicidade, com que se renovam os teus benefícios e as magnificências da tua obra. Nega-te a nossa maldade. Nega-te a nossa presunção. Nega-te a nossa ignorância. Nega-te o nosso saber. Mas de cada negação te reergues, deixando vazios os argumentos, que te negavam, como o túmulo, onde dormistes outrora um momento, para reviver dentre os finados. Entre o termo de um século assombroso e o começo de um século impenetrável, essa ciência, que te pretende remover para o domínio das lendas, surpreende-se agora deslumbrada na região do maravilhoso, onde se parecem tocar as coisas da terra com as do céu, em pleno amanhecer de uma criação nova, sobre a qual pairas, como pairavas no princípio dos tempos, e de cujo caos, decifrando os problemas humanos, emergira outra vez a tua palavra, dardejando em plena ressurreição.
Ressurgir! Senhor, por que nos deste uma língua tão pobre na gratidão? Todos os que já descemos a segunda vertente da vida, e deixamos de nós ao gênero humano os frutos vivos, que nos deste, somos levados hoje a pensar no que seria a passagem da terra para aqueles, a quem ainda não tinhas dado na tua a imagem da nossa ressurreição. Iam-se os homens então como as folhas secas das árvores, precedendo-se, seguindo-se uns aos outros na continuidade estéril da queda, no irremediável do seu termo silencioso. Os pais geravam para a morte. As mães amamentavam para o túmulo. Bem haja o sacrifício e a crença daquele, que nos resgatou deste sombrio destino a paternidade, e nos permite hoje a bem-aventurança de beijarmos nossos filhos, na certeza de os havermos criado para a vida nova, a tua ressurreição.
Assim, Senhor, quisessem ressurgir em ti os povos que te não crêem. A esses em vão procuramos dar com o aparato dos códigos humanos a lei, a ordem, a liberdade. Sua sorte é extinguirem-se, porque não tiveram fé, e não sentem a religião do Ressurgido, que não é só o evangelho das almas regeneradas, mas a boa nova das nações fortes. Essas absorverão a terra a bem do gênero humano, enquanto as outras acabarão como raças de passagem.E por sobre o futuro, que há de ser a tua glorificação, na voz das criaturas e dos céus se ouvirão para sempre os hosanas do teu triunfo: Ressurgiu!

RUY BARBOSA

* A Imprensa – 2 de abril de 1899.

Postado por Marco Antonio de Cádiz às 00:07 0 comentários Links para esta postagem




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