A IGREJA DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO. CONFRARIA. O NOVO SINO. LUIZ DA GAMA. (1)

O belíssimo monumento, tombado pelo Patrimônio Histórico, a Igreja do Santíssimo Sacramento, Igreja Matriz (“que tem jurisdição sobre outras igrejas ou capelas de uma dada circunscrição” – Aurélio), é uma construção da iniciativa do Padre Manuel de Cerqueira Tôrres (autor da “Narrativa das Festas Celebradas na Bahia, no Casamento do Infante D. Pedro, com a Princesa D. Maria, filha de D. José Rei de Portugal”), na derradeira década do século XVIII. O venerável templo foi entregue aos fiéis no dia 21 de outubro de 1794, pelo Vigário de Itaparica, Pe. Tôrres, seu edificador, ficando ao deleite dos devotos e visitantes as obras do mestre pintor José Theóphilo de Jesus, v.g., os painéis que reproduzem a Santa Ceia e os milagres de Jesus Cristo, o Nosso Senhor dos Milagres; os painéis da Ordem Terceira do Carmo; a cúpula do Mosteiro de São Bento (os primeiros monges, que muito se empenharam nas ações abolicionistas chegaram à Bahia, no ano de 1581, sendo que o monastério foi fundado por Frei Antônio Ventura, morto em 13 de dezembro de 1591); o retrato do Irmão Francisco do Livramento, natural de Santa Catarina-ES, peça que compõe o acervo da Casa Pia do Colégio dos Órfãos de São Joaquim, e outras obras de rara beleza. Aliás, por oportuno e curioso, conforme informa D. Carmem Tarquínio Bittencourt, atriz e fundadora do Teatro Vila Velha, neta do preclaro industrial socialista Luiz Tarquínio (a escritora Eliana Dumêt – sua bisneta - lavrou uma biografia, completa, fidedigna, sobre a vida do eminente empreendedor de uma obra revolucionária, monumental, que teve como ingrediente motor o humanismo: “Luiz Tarquínio - O Semeador de Idéias”, 1998), aposentada e ex-funcionária paradigma da Casa Pia, que o referido Irmão Livramento, em sendo combativo prosélito da causa da educação infantil, conseguiu de D. João VI, em 12 de outubro de 1825, a licença para a ocupação da antiga Casa dos Jesuítas (portugueses), para abrigar e educar crianças órfãs.

Encontra-se, no templo itaparicano, além de outras tantas raridades, uma imagem de São Roque que teria sido trazida da Igreja de Vera Cruz, em 1813, “quando a peste da bexiga assaltara, novamente, a povoação da Ponta das Baleias”. Adornando, também, a Casa de Orações, na Capela-Mór, está pendente uma lâmpada cinzelada (9.346 gramas) por Luiz Soares, o célebre lavrador de pratas que visitou a Ilha em 1827, procedente do Pôrto-PT, pelo conduto de Antônio Raymundo dos Santos, joalheiro, à época estabelecido na Bahia.

Hoje, a Igreja Matriz, localizada no Centro Histórico de Itaparica, recebe personalidades ilustres do Brasil e do mundo, inclusive governadores do nosso Estado da Bahia, a exemplo de J. J. Seabra, Régis Pacheco, Juracy Montenegro Magalhães, Luiz Viana Filho e Antonio Carlos Peixoto de Magalhães, este o mais polêmico, o mais aguerrido, demonstrando grande respeito e amor pela Bahia.

Mais tarde, em 21 de outubro de 1816, vinte e dois anos após a abertura da igreja do Pe. Tôrres ao culto dos fiéis, foi criada, na mesma igreja, a Irmandade do Santíssimo Sacramento, cujo Compromisso foi reformado em 1830, obtendo do venerando Arcebispo Romualdo Antônio de Seixas a devida aprovação”, ato constante dos arquivos da Confraria, “ipsis litteris”:

“Exm.º Revdm.º Sr. – A Confraria do SS. Sacramento da Freguesia de Itaparica, conhecendo, pela advertência do Revdmº Cônego Visitador, ter sido erigida sem autoridade e licença de V. Excia., fazendo-lhe ver os erros e superfluidades de um Compromisso pelo qual se governava, determinou fazer o incluso Compromisso para oferecer a V. Excia. E a vista dele conceder a licença necessária para a estabilidade e conservação da referida Confraria, com economia, zelo e fervor dos irmãos, sem haver o mais pequeno abuso.
Esperão, portanto, que V. Exma. Revdma., tomando em sua consideração o exposto, lhe conceda a necessária Licença pelo que ella suplica e espera receber “Mercê”. Despacho: “Aprovamos, na parte Religiosa, o Compromisso junto, da Irmandade do SS. Sacramento da Freguesia de Itaparica, que deverá requerer a S.M. O Imperador a necessária confirmação.
O nosso Revdm.º Cônego Secretário passe a Provisão de Estilo. Residência da Penha 9 de agosto de 1830.

Romualdo – Arcebispo”.

Por doação do português Francisco José Gonçalves Bastos, desembarcou em Itaparica o novo sino de bronze para colocação na torre da Matriz (o primeiro, despencou da única torre, em 5 de março de 1855, quando o mestre José Barbosa era o sineiro), provindo de Lisboa, em 1857, e consagrado, solenemente, tendo como paraninfo o seu doador. Os devotos, ainda sob os fortes efeitos emocionais do sinistro que fez desprender-se da torre o primeiro sino, agora poderiam ouvir as novas badaladas que se traduziam em mensagens de chamamento para os atos religiosos, ou noticiavam qualquer notícia que interessasse ao povo, v.g., naufrágios, incêndios, falecimentos, etc.

Assim, não nos esqueçamos dos principais sineiros de Itaparica: José Barbosa, Agostinho de Santa Mônica e Jacinto da Rocha Pitta. Sobre o sineiro Agostinho, se expressa o historiador Ubaldo Osório:

“Não teve quem o sucedesse na execução de um repique singelo em que o meião e a garrida cantavam, alacremente, e o sino grande fazia a marcação.
O Velho sineiro, ainda aos 78 anos, tangia os sinos maravilhosamente.
Lamentava não deixar um discípulo a quem pudesse confiar a sua torre.
Efetivamente. Com a morte do Mestre Agostinho, só muitos anos depois, apresentou-se um sineiro que conseguiu restabelecer a fama da torre da Matriz.
Foi o Jacinto da Rocha Pitta”. (2)

Nas festividades da data magna da Ilha, o Sete de Janeiro, os sinos avisavam a saída do Carro do Caboclo, da Fonte da Bica para a Igreja do SS. Sacramento, onde se entoavam cânticos, em ação de graças, pela vitória dos itaparicanos na guerra pela Independência.

As nossas notícias já estão se alongando. Portanto, não vou tecer comentários sobre as principais cerimônias que ali aconteceram. Mas, em homenagem ao nosso povo multiétnico, farei uma breve revelação. Em 1838, foi batizado no Altar-Mór da Matriz do Santíssimo Sacramento, futuro e ilustre abolicionista, Luiz da Gama, que escrevera a Lúcio de Mendonça (advogado, jornalista, contista e poeta, fundador da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira nº 11, ministro do Supremo, Procurador-Geral da República, falecido em 23 de novembro de 1909), conforme nos informa UBALDO OSÓRIO:

“Nasci na Cidade do Salvador, Capital da Província da Bahia, em um sobrado da Rua do Bângala. Formando ângulo interno em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, Freguezia de Sant´Ana, a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, oito anos depois, na Matriz do Santíssimo Sacramento da Cidade de Itaparica” (3)

Luiz Gama, filho da sudanesa Luísa Naím, após o seu batismo, foi vendido por seu pai e embarcado para São Paulo onde seria vendido no Mercado de Campinas como escravo. No vil mercado, não havia quem desconfiasse o que seria daquele menino, qual seria o seu futuro. Refugado por um escravocrata, este lhe perguntou, após o garoto informar haver nascido na Bahia: “...bahiano? ... nem de graça! ... Já não foi por bom que te venderam tão pequeno!...” Essa foi a recepção que teve o jovem banido da sua cidade natal, pelo seu pai. O refugado e entregue ao fado, se encontraria, trinta anos depois de rejeitado, com o escravista que não o quis como escravo, por ser baiano(!). Certamente, um fio de despeito daqueles que nasceram na Bahia, ex-sede do Império (aliás, a discriminação com relação à Bahia é sentida e veraz). Era, então, por predestinação, pelo exercício de ações afirmativas, quero crer, um abolicionista ferrenho, poeta, escritor, jornalista e advogado de renome. Agora, ele sabia quem era o homem que não o quis: O Conde de Três Rios, agora seu amigo. É da lavra de Luiz Gama, o seguinte verso, “ipsis litteris”:

“Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra,
Nobres, condes e duquesas
Deputados, Senadores;
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobresa empantufadas,
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, bispos, cardeais,
Fanfarrões imperiais.
Gentes pobres, nobres gentes.
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militânça;
Fulge e brilha alta bonança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, coronéis,
Destemidos marechais,
Rutilantes generais,
Capitães de mar e guerra
Tudo marra, tudo berra” (4)


Luís da Velosa

Fontes:

(1) UBALDO OSÓRIO - História e Tradição, IV edição, 1979.
(2) UBALDO OSÓRIO - Figuras que eu conheci.
(3) LUIZ GAMA – Carta a Lúcio de Mendonça.
(4) LUIZ GAMA – A Bodorrada.

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