CARTA DE PEDRO I À MARQUESA DE SANTOS - II

Pela segunda vez, retomo a leitura das cartas de D. Pedro à Marquesa de Santos, datada de 4 de maio de 1824.


Minha filha1 e amiga

Será possível que tu estimes mais a alguém de que a mim?

Meu coração diz-me que não, meus olhos dizem-me sim.

A quem devo acreditar: no coração, que pode ser iludido, ou nos olhos, que a não serem cegos por força hão de apresentar no entendimento o que se lhes pinta?

Já não quero que o coração me engane nem que os olhos falem verdade, mas os ouvidos que ouviram dizer a... que mandasse em tua casa como se fosses tu, puderam enganar o entendimento que percebe2 qual a predileção que tu tens... a despeito do amor que tu me dizes ter-me, que por mim sempre em todas as ocasiões é retribuído, quando não anda adiante do teu? Eu sinto muito ver-me assim tratado, tu podes estimar tua... sem que desprezes a mim e lhe queiras mostrar o quanto a amas, desfeiteando a teu filho que te quer mais bem do que esses que te dizem que não querem ver nada, que só o que querem é estar contigo.3

Eu espero que tu me trates como devo ser tratado, não pela qualidade de ser imperador, mas pela de ser teu amigo. Não assuntes4 que falo assim para me querer mostrar agora teu amigo, eu sempre assim te falei. Eu sou imperador, mas não me ensoberbeço com isso, pois sei que sou um homem como os mais, sujeito a vícios e a virtudes como todos o são. Eu sou teu amigo, não mereço de ti nem um mau olhar, quanto mais o que tu disseste no quarto de senhora Joana,* o que terá dito no de... Demais, a minha desconfiança não é já tanto por ciúmes, pois tu me deste a palavra, que eu acredito, mas a minha desconfiança é que tu a estimas mais a ela, o que quando o não sejas tu o queres mostrar. Não há pessoa nenhuma isenta de ser neste mundo ou mais ou menos governada por outra. Eu não conhecia até há pouco quem tivesse ascendente sobre ti senão o teu juízo, mas hoje conheço que... é quem te governa ou ao menos a quem tu pareces respeitar, seja lá pelo que for. Eu não tenho nada que tu a estimes, pois me dizes que com essa estimação tu lhe pagas a obséquios que lhe deves fazer bem, mas nunca deves desprezar, tratar mal a teu filho a ponto de o fazeres desesperar e sabe Deus se enlouquecer. O amor que eu tenho é do coração, pois não precisa proteção nem dinheiro, o amor que eu tenho nasce do fundo da alma, e assim com um outro igual é que pode ser pago metade de tudo, e às vezes tudo que me dão é para ti ainda primeiro que para meus filhos, que te dão a ti p... A tua consciência consultada por algum tempo não ta pode tal aconselhar. Consulta-a, meu amor, e decerto acharás razão a este que é teu filho, amigo sempre fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro.

O Imperador5

(Acervo da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional)

Notas (resumo) de Rangel.

1) “Tratamento familiar e carinhoso muito usual nas relações íntimas. Ainda hoje assim se dirigem mutuamente marido e mulher... Uso provindo de Portugal, onde é muito comum o tratamento de filho ou filha entre pessoas diversas, em tom de afeição ou de ironia”. Até os nossos dias esse tratamento é usado entre nós brasileiros.

2) “Modificação isolada por metátese dos verbos transitivos perceber, prevenir, precisar, permitir e outros e corrente no falar roceiro. A lusa pureza da fala do imperador haveria de perder no Brasil parte do seu ranço continental. Como as metáteses, alterações pronominais e formas proclíticas que ele uma ou outra vez deixa gotejar ao longo das suas missivas, muitas outras alterações fonéticas haveriam de modificar a prosódia portuguesa empregada pelo emigrado imperial.

3) “É uma verdadeira carta política, no sentido de que também se liga a essa expressão, a de sua delicadeza intrínseca. Nunca dom Pedro seria mais composto, enunciando as razões, entrando na apanha dos motivos ou acreditando regulares as manifestações do seu apego. Logo de começo ele estabelece a sua tese em termos agradáveis e bem torneados: “Será possível que tu estimes mais a alguém de que a mim? “Meu coração diz-me que não, meus olhos dizem-me sim.”

4) “Verbo transitivo e intransitivo, trazido do sertão e incorporado à nossa língua. Aqui empregado no sentido de dar ou prestar atenção. Dom Pedro por vezes empregava os termos da linguagem particular do Brasil. O convívio com dona Domitila e a sua roda de paulistas te-lo-ía imbuído desses brasileirismos, que bem frequentemente lhe acudiam à pena e à fala, à força de ouvi-los na alcova.”

5) “Esta assinatura, na qual dom Pedro se reveste de sua dignidade de soberano, reproduz 104 vezes neste punhado de cartas ora publicadas. Lembraria frequentemente o monarca à amásia a sua condição oficial, como que oferecida com certa insistência, numa satisfação de autoridade e senhorio muito inseparável dessas regiões freudianas do sentir, onde tanta particularidade aparece como radicalmente extravagante ou extemporânea e afinal se torna de uma explicação tão lógica e natural... O varão atinha-se à firma que lhe era publicamente inseparável ao império das funções, estendendo o sortilégio da função política corrida da sala do Trono aos lençóis da manceba.”


Marco Antonio de Cádiz

Nenhum comentário: